Search
Close this search box.

A religião é um meme?

Compartilhar conteúdo:

Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”

Em 1976 Richard Dawkins sugeriu a existência de estruturas vivas que replicariam músicas, ideias, slogans e modas: os memes. De hipótese sugerida “en passant” no livro “O Gene Egoísta”, hoje se tenta transformar em área científica (a Memética) para entender o processo de transmissão e seleção natural dos memes principalmente nos ambientes digitais como Internet e redes sociais. Mas muito tempo antes de a Publicidade e o Marketing se interessarem pelo fenômeno, certamente a Religião foi a primeira instituição a por em prática as hipóteses da Memética, principalmente as chamadas “igrejas eletrônicas” (pentecostais e neopentecostais) que substituem as antigas liturgias pelos memes como forma de conexão entre o fiel e o plano do Divino.

Memes e memética não são conceitos novos. Falam-se deles desde 1976 quando Richard Dawkins no livro “O Gene Egoísta” desenvolveu a ideia de que a evolução das espécies não procede pelos interesses dos grupos, das espécies e, muito menos dos indivíduos. Mas no interesse dos genes. Eles seriam os verdadeiros replicadores e é a competição deles que dirige a evolução do design biológico. O indivíduo seria um mero veículo desses replicadores. Na verdade, seria apenas o resultado de uma associação desses replicadores formando configurações complexas, de um repolho até o ser humano.

No final do livro Dawkins se pergunta se não haveria outros replicadores. Sim, responde ele, e bem diante de nós: músicas, ideias, slogans, modas de roupas: os memes. Seriam como estruturas vivas as quais comparou com parasitas infectando o hospedeiro, agrupando-se e formando memes mais complexos, assim como os genes.

Ao invés de uma origem nobre com uma grande obra inaugural, a Memética surge, portanto, como uma proposta “en passant”. Na verdade a Memética não surge como uma teoria, mas uma analogia curiosa proposta por Dawkins. Trabalhos de pesquisadores posteriores como Aaron Lynch (Units, Events and Dynamics in Memetic Evolution) e Douglas Hofstadter (Matemagical Themes) tentaram trazer algum rigor científico.

Ironicamente a Memética foi vítima dos próprios mecanismos que ela descreve: ela própria virou um meme, disseminando-se como um hype da moda nesses tempos de redes sociais e Internet. Nunca se falou tanto em memes, que instantaneamente tornaram-se objeto de interesse pelo Marketing (viral, invisível, trendsetters etc.). O meme e a suposta ciência da Memética viraram instrumentos para tentar anabolizar a eficácia da Publicidade e da Propaganda.

Por isso podemos considerar a Memética muitos mais uma estratégia de análise do que propriamente uma teoria. Na verdade, a utilização dos conceitos de “meme” é muito mais uma tentativa de identificar e explicar fenômenos novos como a replicação instantânea de fragmentos de ideias, cacos de ideologias, símbolos, boatos, fotos e vídeos em redes sociais digitais e Internet.

E principalmente: porque alguns memes se disseminam de forma mais rápida do que outros? Como entender a dinâmica e propriedades da competição e seleção natural dos memes?

Religião na vanguarda do Marketing

 

Ao explorar as imagens a Igreja cria a primeira
estratégia bem sucedida de propaganda

Muito tempo antes de o Marketing e a Publicidade se interessarem pela Memética e tentarem criar táticas de seleção não naturais de memes (o chamado marketing viral, por exemplo), certamente a religião foi a primeira instituição a instrumentalizá-los como estratégia de propaganda, principalmente no meio das chamadas “igrejas eletrônicas” (pelo forte apelo midiático) como as pentecostais e os neopentecostais.

Como afirma o francês Regis Debrays no seu livro “Vida e Morte da Imagem no Ocidente”, a Igreja Católica foi o primeiro exemplo de como as religiões foram os criadores das primeiras estratégias de propaganda para a conquista de corações e mentes. No caso da Igreja Católica, apesar de toda a proibição e alerta que a tradição mosaica fazia ao perigo da idolatria das imagens, foi a primeira instituição a explorá-la como um instrumento bem sucedido de propaganda. Ao lado da liturgia, as imagens nos altares de estátuas e afrescos eram como uma mediação entre a doutrina abstrata e o público ignorante das sutilezas teológicas. As imagens não eram apenas ícones, mas a própria presença carnal de Deus, santos e mártires. Impressão realista que as imagens trazem até hoje em mídias como cinema, fotografia, TV e nas imagens publicitárias.

O problema é que essas imagens estavam imersas em uma liturgia que foi perdendo a sua força, ironicamente no interior da própria civilização das imagens eletrônicas e digitais. Pergunte para qualquer cinegrafista que vai filmar uma cerimônia de casamento em uma Igreja. Para eles, o pior momento para o ponto de vista da narrativa visual é quando os noivos estão no altar diante do padre realizando toda a liturgia. Nada “acontece”! (a não ser em vídeos com desmaios, tropeços e quedas). A edição nesse momento tem que ser muito trabalhosa para dar dinamismo ao momento que, para a liturgia, simbolicamente é o mais importante, mas imageticamente é inexpressivo.

Pois as chamadas igrejas eletrônicas (pentecostais e neopentecostais) resolveram esse problema, abolindo a liturgia e rituais como mediações entre o plano divino e os fiéis. Igrejas decoradas com estátuas e afrescos foram substituídas por exposição massiva de memes no culto religioso: o bispo banhado em suor que grita colérico, o “descarrego” dramático de um fiel obsediado pelo próprio satanás ou vítima de um “despacho”, fiéis cantando e entrando em êxtase e até caindo em transe, a antiga homilia do ritual católico substituída por discursos onde Jesus é convertido em motivador de estratégias de autoajuda etc.

Memes: fragmentos do passado

Se continuarmos com a analogia de Dawkins de que os memes são agentes replicadores como os genes, poderíamos dizer que eles são fragmentos, pedaços, unidades significantes de antigas doutrinas, ideologias ou crenças do passado. As antigas metanarrativas, pesadas demais para um ambiente midiático que exige leveza e rapidez para fazermos downloads ou uploads instantâneos, são despedaçadas e convertidas em memes com comandos para serem inoculados, recombinados e replicados para outros hospedeiros.

Por exemplo, qual o meme do filme “Psicose” de Hitchcock? São aquelas notas musicais agudas que prenunciam a chegada do serial killer na famosa cena do assassinato no banheiro. Pois, mesmo que as novas gerações jamais tenham assistido ao filme de 1960, ficou o meme dessas notas musicais que parecem bastar em si mesmas: ao ouvi-las, associamos instantaneamente com assassinato e cenas de perigo. Ou seja, o meme sempre será um fragmento de um produto simbólico anterior e de estrutura mais complexa e extensa.

Qual o meme do filme
“Psicose” de Hitchcock?

Assim como a cruz ou a suástica tornaram-se memes de antigas doutrinas, replicados através de diversas mídias como se fossem arquivos compactados, códigos fragmentados de ideologias complexas.

Formas de disseminação

 

Os memes parecem obedecer a três formas de disseminação: por distinção, por estratégia e por associação.

(1) Por distinção: o meme selecionador de realidades. O isolamento e ascetismo dos pentecostais (renúncia aos prazeres, sectarismo, mulheres de cabelos compridos e homens de terno com Bíblia na mão) como única forma para manterem-se concentrados em Deus. Talvez o meme mais difundido, pois o seu comando é a discriminação e seleção, não importando a ideologia. Por exemplo, podemos encontrar neonazistas com o meme de distinção do nazismo (a suástica) que jamais lerem uma linha se quer sobre a doutrina. Por isso, paradoxalmente, podemos até encontrar neonazistas com ascendência nordestina, atraídos que são pelo meme de distinção e não mais pela doutrina.

(2) Por estratégia: soluções simples para problemas difíceis. Promessas para ganhar dinheiro fácil sem sair de casa que pululam em pop-ups na Internet, a caixa de bombom para reconciliar sem ter que enfrentar uma difícil discussão de relacionamento ou a promessa de que a salvação de Jesus lhe trará prosperidade, um novo emprego e sucesso. Com o meme de estratégia as chamadas Igrejas eletrônicas abandonam o campo teológico para entrar no mágico com os milagres que invadem o cotidiano. Das lendas urbanas que prometiam milagres (como a estória de que se poderia pagar menos conta de energia elétrica ao colocar pets cheias de água em cimas dos registros de luz) aos milagres executados em série em dias de “reza forte” no culto, temos o mesmo princípio.

(3) Por associação: implícita ou explicitamente pentecostais e neopentecostais associam memes teológicos com mágicos, como no caso dos “descarregos”, “desencostos” ou “desencapetamentos”, associando os milagres ao combate às forças do mal encomendado por inimigos, feiticeiros, mal-olhados, inveja etc. Isso é muito mais do que sincretismo religioso. O caso do sincretismo tem motivos históricos e sociais, ao contrário da associação de memes originários da fragmentação de doutrinas cristã ou afro-brasileiras. São quase que parodias ou estereotipagem.

O contágio

No final do ciclo “viral” temos o fortalecimento e a renovação dos memes – o comando imperioso para que o hospedeiro transmita o meme para as outras pessoas: de pastores ou fieis empunhando uma bíblia ao lado de uma caixa de som gritando ao microfone os seus milagres pessoais, até uma pessoa que lava o seu carro colocando o som no último volume para que toda a vizinhança ouça a última música pop de sucesso.

Se o sagrado e o profano estavam unidos por meio da liturgia e do ritual e a relação com o divino era interior por meio da oração, fé e adoração, com os memes surge a necessidade de criar-se uma comunidade, o impulso imperioso de contar para os outros, replicar, tornar público o quão é feliz com os benefícios concretos (emprego, saúde, dinheiro etc.) que a fé conquistou.

Memes de Associação: religião e magia

A imagem e a liturgia religiosas entram em crise num contexto onde as tradicionais mídias audiovisuais (TV, Cinema etc.) são confrontadas por mídias que aparentemente são audiovisuais, mas aproximam-se bastante da comunicação oral: a Internet, celulares, redes sociais digitais e toda a gama de hibridismos resultantes da convergência tecnológica. A diferença da antiga comunicação oral face a face é que a atual permite a difusão simultânea a partir de uma única fonte.

Por isso, os memes vão colocar em xeque a tradicional divisão cósmica religiosa (o profano e o divino) por dois motivos: primeiro, o ritual, tradicional forma de contato entre as duas esferas, desaparece com o comando do meme em ser espalhado: não há mais “chamado”, “epifania” ou “iluminação”, mas, agora, contágio. Segundo, a dimensão teológico do “mistério” ou do “transcendente” dilui-se quando o meme é incorporado pelo hospedeiro através de um discurso cujo tom é de autoajuda e voltado para unicamente para o receptor individualizado. Jesus não veio mais para salvar a humanidade, mas salvar VOCÊ.

Vem daí os dois fatores que parecem determinar o alcance e rapidez na disseminação de um meme: a importância e a ambiguidade. O meme tem uma relação direta com a possibilidade de ganho ou vantagem individual. E ambiguidade: o meme deve ser um fato novo, porém uma novidade inusitada, bizarra e tão incrível ou mágica que temos dúvida quanto à veracidade.

Como apontaram os psicólogos Gordon Allport e Leo Postman em 1947 (“A Psicologia do Rumor”) em outro contexto, porém pertinentes aos tempos atuais, os memes disseminam-se por duas motivações pessoais: valorizar os relacionamentos (o bizarro e o incrível ajudam a atrair botões de “curtir” e “retweets”) e valorizar a si mesmo (o fator importância pessoal tão bem explorado no slogan “Jesus ama você!”).