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A descoberta do Brasil por Victor Nunes Leal

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Por Jules Queiroz, Advogado – @julesqueiroz

 

Dando uma folga nos temas estritamente funcionais do Direito Eleitoral, decidimos comentar nesse espaço uma obra imprescindível para qualquer operador do sistema eleitoral: Coronelismo, Enxada e Voto – de Victor Nunes Leal.

Ressalte-se que por “operador” do sistema eleitoral não quero dizer apenas advogados, juízes e promotores, mas especialmente jornalistas, analistas políticos e, muito mais importante, eleitores.

Victor Nunes Leal nasceu em Carangola/MG, em 1914. Talvez por ter nascido em uma pequena cidade do interior voltou seu interesse acadêmico para um fenômeno que presenciava diuturnamente.

Victor Nunes Leal, formado em Ciências Jurídicas pela Universidade do Brasil, foi professor da Faculdade Nacional de Filosofia. Inclusive, a obra que ora comentamos foi escrita originalmente em 1945 como tese para o provimento dessa cátedra sob o título “O Município e o Regime Representativo no Brasil”. A par da carreira docente, o autor foi Ministro-Chefe da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitschek e Ministro do Supremo Tribunal Federal, aposentado compulsoriamente desse último cargo pela ditadura militar em 1969.

Ressalte-se que, como Ministro do Supremo, Victor Nunes Leal foi o pai da prática de sistematização da jurisprudência do STF em Súmulas, permitindo rápida consulta e segurança jurídica das decisões da Corte. Permitiu também a sistemática de Súmulas Vinculantes, inclusive a que vedou o nepotismo do Poder Público.

A obra “Coronelismo, Enxada e Voto” traça um perfil da composição de poder na República brasileira, especialmente o período pós-Vargas. Mostra a relação entre os detentores locais do poder político e econômico – os coronéis – e os políticos em âmbito estadual e federal. Toda a construção da República aparenta ser, nesse ponto, firmada na confusão entre o público e o privado nos estamentos mais locais.

Logo no princípio da obra, Victor Nunes deixa clara essa ideia: “Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime  representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constitui fenômeno típico da nossa história colonial. É antes uma forma de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude de qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.”[1]

Aqui vai ao encontro do que expõe outro grande jurista e cientista político, Raymundo Faoro, em sua obra “Os Donos do Poder”, a qual oportunamente comentaremos.

Também destaca o Ministro outras facetas comportamentais do coronel: o nepotismo, com o favorecimento de aliados, e o mandonismo, com o prejuízo de adversários políticos.

A construção do poder, à época em que foi escrita a obra, se baseava na estrutura social agrária interiorana. Hoje, por outro lado, o poder agrário e a posse da terra não parecem ser mais fatores de elevada relevância na constituição do poder político.

Todavia, nem por isso perde a obra sua atualidade.

É que no interior brasileiro ainda figuram arcaicas imagens de coronéis, a despeito de não se basearem mais na posse da terra para o exercício do poder. Nem por isso Victor Nunes deixa de citar que os coronéis, já à época, estavam deixando de ser proprietários rurais para se formar médicos e advogados.

O que diria o saudoso Ministro do sistema político dinástico potiguar?

Mas nem só de coronéis vive “Coronelismo, Enxada e Voto”. É também uma observação sobre o municipalismo brasileiro.

Os Municípios foram concebidos como entes federativos com grau de autonomia semelhante aos Estados pela Constituição Federal de 1946[2]. Ressalte-se que não conheço Federação em que os Municípios (ou Cidades, Comunas, etc) tenham grau elevado de autonomia a ponto de serem considerados entes federados.

Com efeito, nos Estados Unidos da América, modelo inicial de Federalismo, meramente são considerados esferas de administração estadual, não entes federados. Exceção é o Estado da República Federal da Alemanha: lá existem cidades-estados como Bremen, Berlim e Hamburgo. Contudo, lá há meramente algumas cidades elevadas a categoria de Estados-Membros, não a dotação de personalidade federativa autônoma quaisquer Municípios. Tratam-se de figuras mais semelhantes ao Distrito Federal do que aos Municípios brasileiros.

Pois bem. No Brasil, sustenta Victor Nunes, dotamos os Municípios de autonomia jurídica, mas a tiramos do ponto de vista fático. Na Carta de 46, como na de hoje, minguam os Municípios de recursos financeiros para fazer valer suas atribuições constitucionais.

Assim, os poderes municipais ficam necessariamente presos a uma relação não tão republicana com autoridades estaduais e federais, criando aí uma interdependência política e financeira que queda levando a um troca-troca eleitoral: “ E uma doação ou delegação dessa ordem beneficiará necessariamente aos amigos do situacionismo estadual, que porventura estejam com a direção administrativa do município.”[3]

Há ponto outro que gostaria de destacar: a figura do coronel nem sempre tem interesses meramente pessoais no poder político. É que, se assim fosse, não buscaria junto a outras esferas de poder do Estado. É interesse do coronel buscar melhorias para seu Município, recebendo assim dividendos em poder político.

Assevera o autor: “A falta de espírito público, tantas vezes irrogada ao chefe político local, é desmentida, com frequência, por seu desvelo pelo progresso do distrito ou município. É ao seu interesse e à sua insistência que se devem os principais melhoramentos do lugar. A escola, a estrada, o correio, o telégrafo, a ferrovia, a igreja, o posto de saúde, o hospital, o clube, o campo de ‘football’, a linha de tiro, a luz elétrica, a rede de esgoto, a água encanada –  , tudo exige o seu esforço, às vezes um penoso esforço que chega ao heroísmo. E com essas realizações de utilidade pública, algumas das quais dependem só do seu empenho e prestígio político, enquanto outras podem requerer contribuições pessoais suas ou de seus amigos, é com elas que, em grande parte, o chefe municipal constrói ou conserva sua posição de liderança.”[4]

Bem típico, não?

Não busquei aqui resumir nem reescrever a obra. Apenas aguçar a curiosidade do leitor a essa fantástica peça de ciência política da literatura brasileira. Afinal, gostem ou não, ela é uma realidade.



[1] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 40

[2]A Constituição de 1934 também conferiu elevada autonomia aos Municípios. Contudo, não a considero pioneira, visto que já em 1937 foi substituída pela Constituição “polaca” centralizadora de Getúlio Vargas, a qual removeu grande parte da autonomia municipal. Assim, não houve tempo hábil ao jurídico transmutar o político nesse período.

[3]Ob. cit. p. 72.

[4]Ob. cit. p. 58.