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Jogo de Classe

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Rico que é rico torce pelo Fluminense, como o Chico Buarque, e vibra apenas quatro vezes por ano, que é quando tem Fla-Flu. Ao menos desse mal o pobre está incólume. No Rio de Janeiro, o pobre tem direito a usufruir de um clássico do futebol todos os dias da semana, entre uma da madrugada e seis da manhã, ao vivo e grátis: é a pelada Porteiros contra Garçons no Aterro do Flamengo.

Os atletas deixam o trabalho nos horários mais ingratos. Não só eles, como funcionários dos hotéis, pedreiros, frentistas… Pessoas sem as quais essa cidade não funciona. Por isso o futebol tem de adentrar a madrugada, para a cidade não parar durante o dia. Suas equipes, muito mais organizadas do que seus sindicatos, disputam verdadeiros campeonatos, muito mais honestos que os da FIFA.

São oito campos de grama sintética espalhados pelo Aterro, o que permite jogos simultâneos. As torcidas podem escolher o jogo que está mais interessante de torcer, mas o clássico dos clássicos, que mobiliza as multidões, é realmente Porteiros contra Garçons.

Sete jogadores para cada lado, seis na linha e um no gol. O time dos garçons joga no esquema 3-2-1, sendo o Edésio esse um lá da frente. Durante o dia, o camisa onze defende as cores do Amarelinho da Glória. Já pelo lado dos porteiros, a escalação é mais ousada, além de ser uma verdadeira aula de geografia da zona sul carioca. Reginaldo, porteiro do Biarritz, é quem guarda a meta. A responsabilidade da zaga é dividida entre Zé e Tião, ambos companheiros de Edifício Pax. No meio-campo, Severino, do Edifício Itaim, é o maestro. O ataque implacável é formado pelo triângulo mágico: Túlio e Everaldo, dos Edifícios Milton e Chopin, ficam na base. Marco é o vértice. Jogadores assim, sem um sobrenome que os identifique para a tv, mas amados pela multidão enquanto a bola rola. Ainda que menosprezados por ela quando a bola pára.

Marco, aliás, foi tema de uma breve contenda ao ingressar no time. Os garçons protestaram que o atacante é manobrista na Casa da Suíça, não é porteiro. Mas se há um campo em que a democracia existe, esse campo é o futebol. Os breves protestos, mais motivados pela categoria ímpar do manobrista com a bola do que pela sua categoria profissional, cessaram rapidamente, para dar lugar ao espetáculo, que segue por toda a madrugada, até esbarrar nos horários que alguns dos atletas precisam dedicar ao trabalho.

Reginaldo é um dos primeiros a deixar os holofotes, para atravessar a rua e continuar brilhando, mas sob a luz da portaria do Biarritz. Tão logo deixa o gramado, surge alguém para substituí-lo. No país do futebol a bola não pode parar.

No entanto, se a bola parar, muita gente nem nota. Muitos não desconfiam, mas a bola é só um pretexto para a justiça social. Também os porteiros, mas em geral quem faz a propaganda é o time dos garçons. Entre os bêbados do Informal, do Devassa, do Amarelinho, da Taberna e do Taberninha, entre outros, não há um que desconheça o futebol do garçons. Eventualmente, entre um e outro soluço, juram que eram bons de bola, mas tiveram de parar por conta do joelho. Prometem aparecer nas partidas e vez por outra acabam aparecendo mesmo. Coitados.

Quem também costuma aparecer é um grupo de estudantes da UFRJ, mas com eles os atletas do Aterro pegam leve, porque os meninos estudam Geografia, é praticamente todo mundo comunista. Mas com bêbados e condôminos não. Ao contrário, os atletas ficam especialmente exaltados ao receberem suas visitas. Almeidinha, garçom do Odorico, é especialmente bom em descobrir as profissões dos cachaceiros que pagam pelo bem-estar servido em sua bandeja. Quando chega visita, normalmente é ele quem vem conversar com a dupla de zaga do Edifício Pax:

– O doutor que chegou aí, ó…. É neurologista…

Os três trocam sorrisos. É o doutor pegar na bola e o couro comer para cima dele, bordoada de tudo que é lado.

Advogado também aparece com bastante freqüência, mas às vezes surgem profissões mais variadas:

– O doutor aí, ó… É gerente de marketing…

E tome de justiça social feita com as canelas. E do queixo para baixo é canela. Outro dia, apareceu até um banqueiro, por mais improvável que pareça. Bêbados prometem loucuras. Foi um tal de bater no homem que, lá pelas tentas, teve de gritar:

– Ô Adelino, eu sou do seu time, homem!

Mas nem assim o garçom do Le Brants, que foi quem convidou o doutor, aliviou nos safanões. Depois, não havia jeito de dirigir com a perna naquele estado. O sujeito teve de deixar a Mercedes na Praia do Flamengo e voltar de táxi para sua cobertura na Rua Jornalista Orlando Dantas.

Assim, o mundo e a bola continuam girando. A luta de classes transcende os povos e os tempos. Mas a verdadeira justiça social, vê-se apenas no Aterro do Flamengo…