Não sei se você leitor se perguntou por que certos elementos inaceitáveis pelo convívio social nos atraem mais que os socialmente aceitáveis nas obras de arte. Não precisam ser necessariamente coisas antiéticas, ruins, erradas. Podem ser coisas simples, que apenas fogem do padrão, do ordenado, do comum. É o exemplo da relação homossexual entre Arthur e Lancelot nas obras de M. Z. Bradley, ou da excêntrica personalidade de Dean Moriarty na obra de Jack Kérouac. Também abrange caracteres com as sombras de suas mentes à mostra, como Gollum e Coringa, ou mundos espirituais como o Inferno pintado por Wayne Barlowe e Sandro Botticelli. Isso nos atrai por carregar, em seu interior, uma ausência de algo que explique e, ao mesmo tempo, exponha sua verdadeira natureza. Como podemos conseguir entender a fundo alguém como o Coringa interpretado por Heath Ledger ou criaturas como os Espectros, da obra de Philip Pullman?
Todo esse mistério obviamente causa uma certa inquietação, principalmente quando nos deparamos com os universos paralelos tão trabalhados na literatura. Lendo recentemente o livro Mundos Paralelos, de Michio Kaku, encontrei ali um conjunto de explicações e a exposição da natureza do cosmos, mas o mistério ainda permaneceu.
O que há além do ar à minha frente? Que universos se escondem por trás do espelho do meu quarto?
Basicamente, segundo os críticos junguianos, um universo paralelo é uma manifestação em forma de cenário de uma condição psíquica. Seria algo semelhante a um personagem. Lilipute, Cittàgazze, Brobdingnag, Silent Hill e o Reino das Águas Claras nada são senão representações artísticas de nosso eu interior. Quando Will e Lyra (série Fronteiras do Universo) atravessam janelas e mais janelas entre os mundos eles estão, na verdade, cruzando as fronteiras do escapismo entre esses estados míticos do espírito humano. O mesmo ocorre quando Eneias desce ao Averno, ou quando João de Patmos é apresentado ao Reino dos Céus no Apocalipse.
Viajando mais, basta lembrarmos que os mitos carregam não apenas o espelhamento de nossos anseios em seus heróis e deuses, mas também em seus lugares mágicos. Para os gregos, o Hades era um lugar tão sobrenatural quanto o Monte Olimpo, e para um hebreu havia um espanto semelhante no She’ol e no Trono de Deus, todos referentes a mundos paralelos ou à parte do nosso.
Mas o que faz o Inferno de Dante ser mais atrativo que o Paraíso? Será por que aparece primeiro na obra e é lido em primeiro lugar? Inferno e Purgatório carregam, em si, muito do que as almas sofrem, é um meio de escapar para perto do problema.
Estranho? Não, todos nós temos a matéria prima do Inferno, mas sua compreensão pertence unicamente a poucos, dentre os quais, o poeta. Essa fuga é necessária, pois há em todas as sociedades regras que nos impedem de agir de acordo com nossa verdadeira natureza. Se o arquétipo surge das tensões entre corpo e mente, um lugar como um Paraíso dantesco nada mais seria senão um produto da luta entre as forças punitivas da mente e as pulsões instintivas do corpo.
O poeta seria, portanto, aquele que desceu ao mais profundo abismo da alma, e que subiu ao mais distante céu do espírito. É ele quem melhor compreende essa luta, e o que melhor aproveita. E nenhum poeta soube fazer isso com tanta destreza com universos paralelos já conhecidos pelo “grande público” quanto Dante Alighieri. Sua poesia parece ter cavado fundo em busca das tocas mais escuras atrás dos traumas da civilização. Transformando suicidas em árvores e beatos em raios de luz, Dante trilhou todo o universo interno de alegrias e tristezas do subsolo da alma humana.
Dante faz com o cenário o que Shakespeare fez com personagens. Ele criou universos com um grau de profundidade e complexidade que nem Tolkien conseguiu jamais superar. Não é fácil ao poeta tomar os cacos do próprio subconsciente e estruturar toda uma paisagem em torno, baseada em arquétipos já conhecidos, como o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. No Inferno estão todos os instintos violentos, asquerosos e inaceitáveis de nossa própria natureza. No Paraíso encontram-se todas as pulsões de recompensa de nossa mente. Ali, apenas o Purgatório pune o erro e ascende ao Paraíso, tornando-se a única voz da razão nas obras dantescas, mediando entre as tensões da carne e as volições do espírito.
Finalmente, basta-me dizer que não deixo de ver em obras que tratam de mundos paralelos uma certa dose de desespero por fugir da realidade, cercada de dogmas do cotidiano, como uma busca por algo mais humano, mas enterrado sob as camadas do convídio social.