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Uma dura lição para as crianças em “A Era do Gelo 4”

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Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”

Culpa, renúncia e sacrifício são as palavras-chave dessa continuação da franquia “Era do Gelo”. Comparado com os episódios anteriores da série os temas dessa continuação parecem ser mais duros, sérios, como se tivesse uma mensagem para todos: se preparem para os tempos difíceis que virão e mantenham a família e amigos juntos e disciplinados! Por isso, a alusão que a narrativa faz ao épico da Antiguidade “Odisséia” de Homero não é mera coincidência: assim como Homero ajudou a modelar a cultura grega ao se apoderar dos mitos e submetê-los à astúcia racional de Ulisses, da mesma forma “A Era do Gelo 4” (Ice Age: Continental Drift, 2012) organiza os medos e mitos do imaginário infantil para submetê-los à necessidade civilizatória da repressão.

Férias escolares com chuva e frio. Em metrópoles como São Paulo uma das poucas opções nessas situações são os shoppings e seus cinemas multiplex. Pelas associações (chuva, água e frio) veio a ideia de levar os filhos para assistir “A Era do Gelo 4”.

Dessa vez o trio central de amigos (o mamute Manny, o tigre dente-de-sabre Diego e o bicho preguiça Sid) vai enfrentar uma gigantesca catástrofe geológica: a separação dos continentes provocada pelo esquilinho Scrat na sua busca incansável pela noz. A estreita faixa de terra e gelo em que vivem está sendo empurrada para o oceano por um gigantesco paredão de rochas. A única chance de sobrevivência é escapar por uma ponte de rochas e terra vislumbrada no horizonte. É o início da fuga de todos os animais liderados pela família de mamutes protagonistas. Para complicar, Amora, filha de Manny e Ellie, está na adolescência e naquela fase de busca da própria independência e desafiando a autoridade dos pais.

Amora sente-se atraída por um jovem mamute que pertence a um grupo de “rebeldes” que sempre estão em lugares perigosos para viverem experiências de diversão radicais pouco recomendadas pelos pais. Situação suficiente para criar diálogos conflituosos como “eu queria que você não fosse meu pai!” que precederá a uma grande avalanche que separará a família: Manny, Diego e Sid cairão no oceano sobre um imenso bloco de gelo cuja corrente oceânica os levará para longe de Amora e Ellie.

Amora se sentirá culpada pelo desaparecimento do pai depois de ter dito palavras tão duras, enquanto Manny e seus amigos empreenderão uma épica luta enfrentando piratas e outras ameaças para poder retornar à família ameaçada pela catástrofe.

Culpa, renúncia e sacrifício são as palavras-chave dessa continuação da franquia “Era do Gelo”. Comparado com os temas dos episódios anteriores da série (o valor da amizade, respeito às diferenças, a coragem e a ajuda ao próximo), os temas dessa continuação parecem ser mais duros, sérios, como se tivesse uma mensagem para todos: se preparem para os tempos duros que virão e mantenham a família e amigos juntos e disciplinados!

O grupo dos adolescentes rebeldes:
não dê ouvidos para o desejo

Se partirmos do pressuposto do historiador Marc Ferro de que todo filme, especialmente o de ficção, é um documento por trazer para o campo simbólico o imaginário social do momento, podemos formular uma hipótese: será que esta narrativa mais dura que refaz o mito da volta para casa de Ulisses não estaria sintonizada com os tempos atuais de crise econômica e desemprego nos EUA e Europa pós-crise financeira global? Será que as lições do valor moral da renuncia, sacrifício e obediência que “A Era do Gelo 4” oferece para as crianças e aos seus pais e acompanhantes no cinema não seriam uma preparação subliminar para a necessidade da união e otimismo diante dos tempos difíceis que virão?

A astúcia do mamute

A animação “A Era do Gelo 4” tem uma evidente função civilizatória: para as crianças, fazê-la saírem do mundo da Natureza e dos mitos do imaginário infantil; e para os adultos acompanhantes relembrar disso. A certa altura da estória, no meio da fuga dos animais do gigantesco paredão que ameaça jogar a todos no oceano, um animal pergunta para uma dupla de gambás brincalhões e completamente alheios à catástrofe próxima: “vocês não têm medo, quer dizer, medo da morte iminente”, pergunta em tom como fosse uma questão filosófica. “Vou contar um segredo para você”, responde um deles com uma cara idiota, “nós somos burros!” A morte para os animais não é uma questão metafísica ou moral (para onde eu vou?), mas uma questão de instinto de sobrevivência. Os animais pertencem à Natureza onde não existem demandas morais como a renúncia e o sacrifício.

Mas esses valores devem ser ensinados para as crianças por meio da jornada do mamute Manny. Ele representa o herói Ulisses da epopeia de Homero.

Para Adorno e Horkheimer no livro A Dialética do Esclarecimento a astúcia de Ulisses é a proto-história da civilização racional, cuja ápice vivemos atualmente no chamado Capitalismo Tardio. Ulisses consegue retornar a Ítaca após usar sua astúcia para escapar do perigo dos mitos durante sua jornada pelo Mar Mediterrâneo: os perigos de Cila e Caríbdes, cegar o olho único de Polifemo, conservar sua forma humana apesar das seduções de Circe, resistir à tentação da amnésia e do paraíso artificial dos Lotófagos (a animação faz uma breve alusão quando Sid come uma flor de lótus e cai em sono profundo) e resistiu ao canto das sereias.

Para os autores, a astúcia de Ulisses estava em se entregar em um primeiro momento aos encantos e seduções da Natureza, dos mitos e dos demônios para, depois, enganá-las. Da mesma forma como o herói moderno (o homem comum) o faz ao reprimir seus impulsos e desejos no seu dia-a-dia em nome da racionalidade das metas sociais, políticas ou corporativas.

Embora saiba da existência das sereias que se escondem nas pedras para, através do seu canto, afundar os navios, Ulisses mantém o rumo da sua embarcação para se permitir ouvir os cantos proibidos. Porém, astutamente mantém os remadores com seus ouvidos tampados com cera enquanto deixa-se ser amarrado ao mastro principal. Permite-se ser seduzido, mas logra mais uma vez os mitos sedutores.

Na animação temos uma sequência análoga quando o trio de protagonistas em seu bloco de gelo transformado em embarcação que vaga pela correnteza encontra estranhas criaturas capazes de criar alucinações com o que cada um deles mais deseja. Determinado, Manny compreende a ilusão e tampa o próprio ouvido e salva os amigos.

Uma dura lição

Parece que a animação “A Era do Gelo 4” pretende dar uma dura lição para as crianças: a astúcia e a firmeza de propósitos depende da renúncia aos desejos e a rígida disciplina à ordem e valores. Com exceção do protagonista homérico Manny, todos aqueles que quebram a ordem ou são desobedientes por dar ouvidos aos “cantos das sereias” são punidos: Amora após desobedecer às ordens paternas vê seu pai sendo levado para o oceano pelo desabamento de rochas; o pirata e tripulação são punidos ao cair na ilusão criada pelos estranhos seres marítimos; Amora quase morre em uma misteriosamente bonita caverna ao ser atraída pelo seu jovem amado e desobedecer às ordens da mãe Ellie na fuga; e, finalmente, o pobre esquilinho Scrat que chega à Atlântida dos esquilos que lhe recomendam “transcender” do seu “mesquinho” desejo por nozes – Scrat, claro, não obedece e é duramente punido pelo destino na sequência final por abraçar o seu doce desejo.

É a fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem” onde sonhos ou desejos dos personagens que possam confrontar a ordem devem ser punidos. É um esquema de elaborar as fantasias e desejos nos filmes para adultos. Principalmente desde os filmes musicais, temos o esquema da liberação de elementos transgressivos ou desestabilizadores da ordem moral ou política até certo ponto da narrativa, para, ao final ou na próxima sequência, retornar à ordem convencional.

“A Era do Gelo 4” quer ensinar a seguinte lição para as crianças: desde sempre o caminho da civilização é o da obediência e do trabalho, sobre o qual a satisfação brilha como mera aparência. Quem quiser vencer as provações não deve dar ouvidos aos chamados sedutores.

Assim como na Grande Depressão econômica dos EUA da década de 1930 onde os filmes de Frank Capra tiveram o papel de “arregimentar a tropa”, isto é, injetar sua mensagens de otimismo com protagonistas persistentes e idealistas, “A Era do Gelo 4” trás novamente essa mensagem em meio a um novo quadro de crise econômica norte-americana. Porém, sem a leveza e romantismo de Fank Capra. A animação infantil é surpreendentemente dura e impiedosa, assim como a mãe que pune seu filho por ter colocado a mão onde não devia.

Portanto, a alusão à “Odisséia” de Homero na animação é muito mais do que mera coincidência ou recurso retórico: assim como Homero ajudar a modelar a cultura grega ao se apoderar dos mitos e submetê-los à astúcia racional de Ulisses, da mesma forma “A Era do Gelo 4” organiza os medos e mitos do imaginário infantil para submetê-los à necessidade civilizatória da repressão.

O heroico e determinado mamute Manny e o fracassado esquilinho Scrat são os dois modelos de comportamento oferecidos à crianças para comparação: o primeiro, o sucesso da civilização baseado na renúncia e sacrifício; o segundo, sempre punido por se deixar levar pelo desejo e prazer.

Ficha Técnica

  • Título: A Era do Gelo 4 (Ice Age: Continental Drift)
  • Direção: Steve Martino e Mike Thurmeier
  • Roteiro: Michael Berg e Jason Fuchs
  • Elenco (vozes): Ray Romano, Denis Leary e John Leguizamo
  • Produção: Blue Sky Studios
  • Distribuição: 20th Century Fox
  • Ano: 2012
  • País: EUA

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