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O Chuveiro

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Folhetim em três partes

Parte I

Um casamento sobreviverá por muito tempo, ou pior, eternamente, apenas se baseado nos sinceros laços da comodidade. Casamentos fundados sobre o alicerce do amor, embora felizes, têm um prazo de validade ínfimo, de não mais que alguns felizes anos. Como cada vez mais se pretere a felicidade em nome da estabilidade, a tendência é a perpetuação da comodidade dos casamentos.

Não que todos os enlaces matrimoniais sejam produtos do medo da incerteza, mas os que se arrastam ao longo dos séculos, ainda que germinados da semente do amor, perpetuaram-se em nome da comodidade adquirida com o tempo. Embora a subjetividade no conceito de felicidade seja inegável, muito mais subjetivo é o conceito de comodidade.

Entre outras coisas, comodidade pode significar não ter o trabalho de se produzir com o propósito de buscar novos parceiros. Comodidade pode ser alguém que carregue as compras do mês, alguém que pague por elas, ou ainda, alguém que transforme alimentos comprados em comida. Comodidade, para mim, era um chuveiro.

Estávamos casados há doze anos. Tivéssemos nos casado quando eu tinha trinta e seis, hoje já teria completado um quarto de vida a dois. Como me casei antes disso, fica claro que mais de vinte e cinco por cento da minha vida foi vivido ao lado de outra pessoa – estou naquela idade em que não se sente à vontade falando da própria idade. O lado bom dessa matemática é que, ao menos, ainda não tenho quarenta e oito anos.

Morávamos em um apartamento confortável, apesar da pequena fortuna, maior que a renda per capita de muitos países emergentes, que representava o aluguel. Eram bons quartos, organizados em dormitório e escritório, sala e IPTU com vista, cozinha espaçosa e um banheiro honesto. Para mim, era um apartamento de bom tamanho, ou até de tamanho grande demais. Comportava a nós dois e nossos enormes egos com alguma sobra. Ainda assim, desde que assinamos o contrato de trinta e seis longos meses, renovados por outros cento e seis meses ainda mais longos, ela queria se mudar. Alegava que precisaríamos de um quarto para os filhos (que nunca tivemos) e que sonhava em ter uma banheira. Entre seus sonhos, simpatizava mais com a banheira do que com as crianças, embora nosso chuveiro fosse uma ducha excelente, que apresentava propriedades terapêuticas depois – ou mesmo antes – de um longo, ou mesmo curto, dia de trabalho.

Assim, protelei as crianças e a banheira enquanto pude, também por uma questão de comodidade. Nunca quis mais vínculos do que os estritamente necessários, nem mais espaço, mais despesas ou menos privacidade. Reconheço o egoísmo no meu erro e o erro no meu egoísmo.

A situação, rapidamente, ao longo de doze anos, se tornou insustentável. Já não compartilhávamos muito mais coisa do que o desejo de ter um filho e uma banheira. Determinado dia, determinado dia triste, aliás, ao consultar-me com minhas vontades, não encontrei propósito em continuar ali. Na verdade, sou péssimo em encontrar qualquer coisa, o que não me ocorreu à época. Tenho uma espécie mal diagnosticada de miopia emocional aguda e galopante.

Com a cabeça repleta de cachinhos e caraminholas, fui tomar um bom e demorado banho escaldante, para pensar em paz, enquanto somente a água quente seria capaz de me açoitar a vida. Pesando os prós e contras do meu casamento, cozinhei na mesma panela: a insegurança de ficar sozinho, a instabilidade de uma vida apenas comigo, o trabalho que daria encontrar outra pessoa minimamente compatível com minhas neuroses (seria ridículo dizer que não procuraria por ninguém), a dificuldade de encontrar um apartamento de solteiro, voltar a ter de passar minhas próprias camisas sociais e viver à base de pizza novamente. Em outra panela, de caldo igualmente rico, cozinhei o sabor agridoce da vida a dois, a estabilidade e a segurança que é ter alguém quando mais e, infelizmente, quando menos se precisa, além do conforto da vida naquele apartamento, que eu nem gostava tanto assim, mas, meu Deus, o que foi aquele banho?! O chuveiro, sem dúvida, era algo a ser considerado. Por um segundo, pensei que nada na vida me dava mais prazer do que aquele chuveiro. Eu mesmo não acreditava nos meus pensamentos, mas a verdade é que não poderia deixar para trás aquele chuveiro. Daquele momento em diante, o chuveiro passou a me impedir de largar tudo e casar-me comigo mesmo. Parece um relato ridículo para quem prioriza a felicidade e não a estabilidade, e é, mas essa é uma minoria que, apesar de estar certa, também não é feliz. Embora tenham mais capacidade de entender as outras pessoas do que o oposto. Quem se pretende estável, não feliz, além de ser eterna e obviamente infeliz, julga mal o caráter dos outros. Só um idiota é capaz de julgar. Em todas as esferas, do futebol à vida dos outros, passando pelo Superior Tribunal.

Comecei, então, a arquitetar um plano para providenciar um chuveiro como aquele. Sim, porque ela jamais me deixaria levá-lo e comprar-lhe outro qualquer em seu lugar. Não que ela fosse uma pessoa ruim, trata-se da forma de agir típica da ex-mulher latente, que habita cada mulher. Anotei a marca da peça e, a julgar pelo número de consoantes, era russo ou do leste europeu. Chamava-se Grzybvsky, lembro bem. Mais ridículo do que ter um chuveiro como sustentáculo de um casamento, é um homem que sai do trabalho, todo dia, quinze minutos mais cedo e se submete à indignidade de entrar não em uma, mas em todas as lojas de material da Rua da Alfândega e adjacências em busca de um chuveiro cujo nome não sabe pronunciar. A transliteração de Grzybvsky para o meu português, aprendido com muito custo nos bons tempos do Colégio Pedro II, era: Grisibóvisque. Entrei em absolutamente todas as casas de material do Centro da Cidade, perguntando:

– O senhor tem do chuveiro Grisibóvisque?

Todos respondiam, naturalmente, que não, com a mesma expressão de espanto e chacota que dispensavam a quem, por ignorância e ingenuidade, se dirige ao balcão para pedir coisas estapafúrdias, como alicate de fenda, carvão em pó, etc. Ninguém jamais ouvira falar nesse chuveiro, mas ainda que pareça estranho e sintomático, eu tinha certeza de já ter visto aquele nome antes. Lógico, era o nome que lia ao olhar para cima durante o banho, mas aquelas consoantes se traduziam em algo mais familiar do que isso. Só não sabia ainda o que era e estava longe de descobrir.

Era um belo chuveiro, disso eu sabia. Todo trabalhado em um metal fosco com detalhes na cor preta, era bojudo e transmitia respeito a quem se aproximava de suas torneiras. Uma vez acionado, maravilhava o mundo com uma ducha de invejar as cataratas do Iguaçu. Não podia me dar por vencido e desperdiçar outros doze anos de vida por não encontrar chuveiro semelhante. Fotografei o danado com nossa máquina digital, pois um estímulo visual me pareceu mais eficiente do que pronunciar seu impronunciável nome de origem balcânica no balcão de qualquer espelunca do Centro da Cidade. Como nunca revelamos foto alguma daquela máquina, em verdade, de nenhuma outra; tive de me atualizar a respeito do procedimento. Em troca de alguma soma em dinheiro e de um olhar de assombro (ao qual já estava me habituando), o menino da loja de fotografia me entregou as cinco fotos do meu caro chuveiro, cada uma privilegiando um ângulo. Confesso que no meu périplo, a cara de assombro desse menino foi o que mais me intrigou. Afinal, imagino que psicopatas e maníacos sexuais, em algum momento da vida, também revelam suas fotos. Que havia de tão estranho em cinco fotos de um chuveiro?