Search
Close this search box.

Delinquência juvenil, comoção seletiva e lágrimas de crocodilo

Compartilhar conteúdo:

Em 1937, Jorge Amado, então com vinte e cinco anos de idade, publicou Capitães da Areia, um dos seus mais reconhecidos romances. A obra, recentemente adaptada ao cinema, narra o cotidiano de crianças e adolescentes infratores na Bahia da década de 30. As angústias, dúvidas, inseguranças, frustrações e medos dos jovens são abordados com uma ímpar sensibilidade social e poética, componente característico das suas obras iniciais, a exemplo da também excelente Suor.

Ainda que a sociedade não tenha em regra qualquer preocupação acerca da compreensão da origem de mazelas sociais como a violência urbana, importando-se única e exclusivamente em clamar desvairadamente pela proteção de seus patrimônios por meio da ostensiva repressão policial, é natural – e, sobretudo, paradoxal – que as pessoas se comovam com a situação de Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas e demais protagonistas do livro; ao se deparar com o histórico de abandono, fome, violência, falta de carinho e afeto que vergastam impiedosamente o miserável dia-a-dia desses jovens, empurrando-os fatalmente à delinquência, brota no leitor uma inédita e emotiva sensibilidade, contrariando o viés mesquinho e individualista com os quais costuma tecer suas análises sobre o tema.

Percebem, enfim, que não é um problema de ordem puramente particular, privado e individual, que os adolescentes não são ladrões por que querem e tampouco por pura ruindade, como insistem alguns, mas que se trata um problema de natureza eminentemente social, nascido preponderantemente da omissão do Estado, da família e da própria sociedade em dar um mínimo de garantias à efetivação dos mais fundamentais direitos daqueles de origem mais humilde que dependem do poder público para concretizá-los.

Mas o que realmente assusta é que, uma vez fechado o livro ou terminado o filme, essa nova compreensão se esvai com a mesma velocidade com que as miúdas letras brancas dos créditos somem na tela, visto que os personagens que provocaram aquela perspectiva até então inexistente sobre as origens da delinquência juvenil não costumam ser identificados no dia-a-dia apesar das idênticas e escandalosas situações que  passam corriqueiramente sob os nossos narizes; dos sinais de trânsito, por exemplo, multiplicam-se crianças  e adolescentes esquálidos e maltrapilhos lavando para-brisas em troca de alguns centavos. Invisibilizados, alimentam a condição de potenciais delinquentes, quando, assim passarão a ter alguma visibilidade, na esteira da violência simbólica de jamais terem gozado da oportunidade de sonhar com um futuro alvissareiro. Trata-se de pessoas que, apesar da gritante semelhança, não são identificadas com os personagens da obra. Pelo contrário: continuam sendo vistos como um odioso inconveniente que insiste em violar o sacrossanto direito de não ser incomodado, restrito, obviamente, à massa de bem nutridos que os enxergam como estorvos ignaros e piolhentos. Flanelinhas e pedintes entram também nessa classificação.

Assim, o jovem carente, quando deparado dormindo em calçadas em paradas de ônibus, fumando crack, cheirando cola ou em situação de mendicância, é plenamente ignorado, invisível até, claro, abordar alguém economicamente mais privilegiado para sorrateira ou violentamente subtrair-lhe algum bem. Só assim é que vira foco das atenções da sociedade e do Estado, de preferência por meio de espancamentos e execuções sumárias.

E aquele mesmo jovem, invisibilizado, ignorado e desprezado pela sociedade, privado de uma educação de qualidade, de um tratamento de saúde digno, de lazer, cultura e de qualquer afeto familiar, ganha todas as atenções que lhe foram categoricamente negadas durante toda a vida quando, finalmente, comete um ato infracional. Clama a sociedade, então, por uma dura resposta do Estado, por uma responsabilização draconiana seja por meio da internação compulsória ou o recrudescimento da legislação criminal. A prevenção, por sua vez, virá somente pela repressão e pelo aumento do efetivo de policiais na rua.

E se a polícia for afeita a chacinas, melhor ainda, pois para vagabundo não existe melhor política pública que a malfadada execução sumária, de preferência em larga escala e travestida dos patéticos e embusteiros autos de resistência. Reprimir passa a ser a única solução, a única forma de proteger seus patrimônios – única coisa que tem algum valor. O Estado e a sociedade não tem nada a ver com a situação destes cidadãos e cidadãs, desimportantes até deliberadamente porem em risco a ordem e a paz social. Afinal, majestosa é a igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sobre as pontes, de mendigar na rua e de roubar o pão, diria Anatole France.

Um trecho de grande apelo simbólico do  livro é aquele no qual algumas beatas repreendem o padre José Pedro, pároco que se aproxima dos protagonistas com o intuito de compreendê-los e ajudá-los. Chegam as senhoras a denunciá-lo à diocese por tal comportamento. O padre, então, sofre do bispo uma severa admoestação por interagir com os meninos, visto que sua atitude vem ocasionando o sucessivo afastamento de vários fiéis.

O leitor, pelas circunstâncias do livro, é levado a condenar a postura conservadora e mesquinha tanto das beatas quanto do próprio bispo, mas não percebe que, em sua postura cotidiana, se aproxima bastante dos mesmos quando, com desprezo, encara o adolescente que o aborda no sinal. Desumanizam em escala semelhante não só o jovem em conflito com a lei, mas todos aqueles que se encontram em regime de reclusão e detenção. E, não suficiente, atrevem-se a reclamar pelo fato de não saírem “ressocializados” após o cumprimento da pena ou da medida socioeducativa, enchendo a boca para defender sanções como a pena de morte, o trabalho forçado e a prisão perpétua.

Mesmo após 75 anos da publicação de Capitães da Areia, quase 24 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, 22 anos após a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente e alguns meses da promulgação da Lei 12.594 de janeiro de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), ainda persistem, teimosa e lamentavelmente, as culturais concepções menoristas consolidadas no medieval Código de Menores, datado de 1927, como aquelas que dizem respeito à perspectiva puramente correicional de jovens infratores, insistindo em não enxergá-los como sujeitos de direitos mas como meros objetos fadados à desumanização e à estigmatização correicionais enquanto metodologia pedagógica única e à qual devem se submeter para “pagar” pelo que fizeram – e até pelo que não fizeram.

No livro, à solitária dá-se o nome de cafua, o mesmo que leva no CEDUC de Pitimbú, no Planalto, zona oeste de Natal, na atualidade. Mais auto-explicativo e simbólico, impossível.

Imagem Destacada: Menino de Rua, Blog Ailton Desenhos