Os deuses são grandes exemplos de famílias disfuncionais e de relacionamento complicado com seus filhos, e com o Deus Cristão não seria diferente.
Uma família disfuncional é aquela em que prevalecem os abusos, os excessos, o mau comportamento e os conflitos, geralmente com reincidência, causando sofrimento de forma contínua e periódica aos membros da família. Exemplos comuns de famílias disfuncionais na mídia são os desenhos como Os Simpsons, The Family Guy, The Cleveland Show e Bob’s Burgers e, nas séries de TV, temos The Middle, Two and a Half Men e Modern Family. Quem assiste a essas séries, de primeira se depara com relacionamentos familiares desestruturados, sem a mínima confiança mútua e que é pautada em hierarquias quase gorílicas entre os membros.
Uma criança que cresça num ambiente familiar disfuncional aprende que o fisiologismo (a troca de favores e o tráfico de interesses) é algo natural e ético, e futuramente resulta em adultos com forte dependência emocional que, devido a isso, gerará sua própria família disfuncional. É muito comum a presença de membros alcoólatras, usuários de drogas e violentos que perpetuam vícios observados em seus pais, muitos dos quais têm transtornos de personalidade. O mais comum nas famílias disfuncionais é a falta de respeito (os membros não respeitam as escolhas, as decisões, as individualidades e as opiniões uns dos outros), levando ao pouco diálogo, à falha na construção dos valores emocionais necessários para formatar uma família saudável.
E, para os que dizem que apenas determinados modelos familiares são capazes de gerar filhos disfuncionais, lembremos: é um problema presente em qualquer grupo de modelos familiares, desde pais gays criando um filho até a tradicional família heterossexual cristã.
Javé e seus filhos
Um dos motivos que me fazem não ser mais cristão é uma simples epifania. Certa vez percebi que Deus era um tipo de pai disfuncional e, como tal, estava longe de ser perfeito. Como toda a crença bíblica acerca de Deus está centrado na figura de Javé, que alega para si mesmo a perfeição, percebemos então que temos um problema nas mãos.
Como todos os pais e mães que se prezem, Javé quer que seus filhos (ou escolhidos, se assim o preferir) sigam os caminhos que ele ditou. Nem sempre serão os melhores caminhos, e nem sempre serão os mais plausíveis, lógicos ou racionais, mas são caminhos que ele, Javé, fez questão de ditar, e nós temos de seguir se quisermos ir para o céu. O problema é que Deus não criou o homem para os caminhos que ele próprio ditou: nos deu genitálias e hormônios potentes, fez o sexo como medida preventiva para várias doenças, nos dotou de linguagem, pensamento, razão, livre arbítrio e liberdade e, no fim, nos condena por realizar justo aquilo para o qual nós fomos feitos. O problema é que nem sempre seguir o caminho judaico-cristão faz as pessoas felizes, uma vez que a maior parte das estruturas de nosso corpo e de nossa mente não suportam coerentemente o modo de vida cristão. O problema é que a felicidade das pessoas não importa muito para Javé, pois sempre que uma pessoa está simplesmente cuidando de sua vida e sendo feliz sem causar mal a outra pessoa ele faz cair fogo e enxofre do céu para castigar a felicidade dos mortais.
Javé é um pai disfuncional, tem comportamento semelhante ao de um pai alcoólatra e impaciente, sempre batendo nos seus filhos e criando regras repentinas e impraticáveis, e dando uma surra sempre que as regras não são cumpridas.
Analogias necessárias
Assim como ocorre na relação entre Deus e Homem, a relação Pais e Filhos também leva consigo alguns problemas. Lembremos que não sou pai ainda, mas muito do que penso a respeito de criar filhos perpassa uma linha tênue entre o amar e o respeitar, principalmente respeitar as escolhas dos filhos. Minha proposta pessoal é que eles não confundam o ato de vigiar seus passos para assisti-los quando algo der errado com o controle de seus passos para que não cometam erros (como posso demonstrar em um texto futuro, considero o erro a melhor forma de autoaprendizagem de todas).
Primeiro problema: Deus desrespeita as individualidades que ele próprio instituiu, causando sofrimento, morte e dor a todos os seus filhos. Do mesmo modo, um pai que não respeita as individualidades dos filhos pode causar sofrimento para o mesmo. Um pai hétero que não respeita um filho gay em sua individualidade está mais preocupado com o que os outros dirão dele que propriamente com a felicidade de seu filho.
Segundo problema: Deus não tolera a expressão de determinadas emoções (tristeza, raiva, cansaço), julgando e punindo muitos dos que expressam tais sentimentos. Da mesma forma, muitos pais, achando que estão fazendo o melhor pelos filhos, muitas vezes punem o choro como sinal de fraqueza, ou o simples gosto por costura ou decoração como sinal frescura, ou a ambição profissional como sinal de mal-caratismo.
Terceiro problema: como narcisista-mor, Deus manipula o povo com milagres, promessas, profecias, ameaças. Em vez de um povo amá-lo pelo que ele simplesmente é, ele gasta seu tempo tentando comprar esse amor por meio de ameaças ou presentes. Alguns pais fazem isso para comprar a obediência de seus filhos: surras desnecessárias (não confundir com palmadinhas), presentes pra parar o choro, promessas pra parar a birra, ameaça de castigo pra parar a desobediência. Muito do que temos como fisiologismo e ditadura é basicamente o que foi ensinado em casa.
Quarto problema: Deus é o tipo de pai abusador. Ele mata, comete genocídios, castiga duramente qualquer pessoa, manda crianças de peito e fetos para o inferno. Os pais humanos fazem o mesmo às vezes, dando surras e espancando seus filhos o tempo todo, torturando física e mentalmente, valendo-se de agressões verbais constantes, e tudo isso no intuito de dominá-los.
Quinto problema: Deus priva os humanos de sua liberdade ou de direitos básicos em troca de amor. Privou povos inteiro de seu direito à vida, à liberdade, à opinião, ao lar, à paz, e tudo isso em troca de ser amado. Ainda por cima, privou o próprio povo judeu de suas terras por quase dois mil anos somente porque não acreditaram de cara em uma evidência de Messias (nascido no Natal, segundo os que creem nele), cujas evidências foram apresentadas de forma vaga, irracional e sem o mínimo de plausibilidade. Alguns pais fazem o mesmo: privam seus filhos de experiências de vida, de liberdade, de opiniões, enfim, muitos pais, para sentirem-se dominadores na relação pais-filhos, privam seus filhos de suas próprias individualidades.
Sexto problema: Deus é dogmático e sectário. Qualquer pessoa que disser a Deus que não acredita nele é simplesmente mandado para o inferno. Você faz de tudo para melhorar a vida de todos os que te cercam, e sem esperar nada em troca, nem mesmo após a morte, sem esperar reconhecimento nem nada, apenas faz porque acha que é o correto, mas se você simplesmente não amá-lo nem acreditar nele, vai para o inferno, enquanto que toda uma bancada evangélica corrupta rouba milhões dos cofres públicos, mata muito mais gente, e vai para o céu somente porque acredita nele. Enfim, Deus não gosta de opiniões contrárias. Alguns pais são assim: seus filhos são proibidos ou impedidos de exercer opinião e, quando o fazem, jogam a culpa nos amigos, nos relacionamentos, nos colegas, pois os filhos deles jamais seriam capazes de pensar por si mesmos e de discordar das ideias de seus pais.
Sétimo problema: Deus é perfeccionista. Não adianta tentarmos, tentarmos, tentarmos, nunca conseguiremos fazer nada do que é necessário. O excesso de regras e a pouca tolerância com falhas vêm do fato de ele ter nos criado para errar, para cometer falhas, e de isso ser praticamente um fato autoevidente, mas ele nos faz acreditar que a falha é nossa, nos convence de que nós somos imperfeitos e ele é perfeito, e exige de nós uma perfeição humanamente impossível. Alguns pais fazem o mesmo: querem que seus filhos sejam perfeitos em todos os sentidos do que eles consideram perfeição. Pais cristãos querem que seus filhos sejam exemplos máximos de vida cristã. Pais politizados querem que seus filhos sejam exemplos perfeitos de suas ideologias. Pais consumistas querem que seus filhos sejam exemplos perfeitos de capitalistas. Muitas vezes, é uma perfeição que não se pode exigir de um ser humano, e que os próprios pais não cumprem, fazendo com que os filhos vejam a hipocrisia como um caminho válido a se seguir.
Oitavo problema: Deus é o maior promotor da Síndrome de Münchhausen por procuração de toda a existência. Enquanto que um portador da síndrome inventa ou mente sobre sintomas próprios para conseguir remédios ou benefícios, quem o faz por procuração atribui doenças inexistentes a terceiros, inventando doenças ou mentindo sobre sintomas para obter controle sobre eles. Deus atribui uma doença ao homem, o pecado, afirma que o meio de se libertar da doença é confiar no sacrifício de outro filho seu, morto por ele próprio. Alguns pais (principalmente mães) têm Síndrome de Münchhausen por procuração, criando seus filhos como portadores de asma, TAG, TOC, Depressão, Esquizofrenia, Hiperatividade e outras doenças que, na maior parte das vezes, são simplesmente inventadas pelas mães para manter o controle sobre seus filhos (ou para justificar a falta de controle).
Corrigindo o problema
E o que fazer para não me tornar um pai disfuncional? Bastante simples: antes que seu filho chegue à adolescência, procure corrigir em si mesmo todos os problemas que uma criação disfuncional fez com você, ou simplesmente respeite a individualidade dele. Você pode fazer em qualquer um dos vários caminhos psicológicos à disposição de qualquer pessoa, ou simplesmente não usando seu filho como depósito de frustrações.
Todo pai quer que os filhos sigam seus passos, e isso é natural, nada contra. Obviamente, todos os pais querem filhos que exerçam as mesmas profissões que eles, que pratiquem as mesmas religiões que eles, que tenham a mesma sexualidade que eles, que sigam as mesmas opiniões políticas que eles, que morem nas mesmas cidades que eles, que tenham os mesmos gostos que eles e que possuam os mesmos pontos de vista que eles. Porém, nem sempre nossos filhos serão felizes exercendo a mesma profissão que a nossa, praticando a mesma religião que nós, tendo a mesma sexualidade que nós, seguindo as mesmas opiniões políticas que nós, morando nas mesmas cidades que nós, tendo os mesmos gostos que nós, nem possuindo os mesmos pontos de vista que nós. A maioria dos pais, hoje, criam filhos para serem suas cópias, e terminam deixando a felicidade deles em segundo plano.
Muitas vezes, um filho nosso poderá seguir uma profissão que consideremos loucura (como ser professor de nível fundamental em vez de empresário de publicidade). Muitas vezes, um filho nosso pode simplesmente praticar uma religião que consideremos esquisita (imaginem-se como dois evangélicos pais de um filho umbandista). Pode ser que nossos filhos tenham sexualidade divergente do restante da família (imaginem uma filha trazendo a namorada para casa num lar heterossexual). Nossos filhos podem ter opiniões políticas diferentes (mesmo eu sendo coletivista libertário, pode ser que um filho meu simpatize com os ideais direitistas neoliberais). Pode acontecer de um filho nosso querer tentar a vida em outra cidade ou país (imaginem se um filho aparece com passaporte carimbado e malas prontas pra passar o resto da vida na Austrália). Pode ocorrer de nossos filhos terem gostos diferentes (mesmo eu amando Rock, um filho meu se tornar apaixonado por pagode). Pode ser que um filho nosso desenvolva pontos de vista distintos (um evolucionista pode ter um filho criacionista).
E em nenhuma dessas situações, o filho tornou-se mais ou menos amável, apenas exerceu sua individualidade que, numa família saudável, culminará tão somente em sua saúde enquanto pessoa, indivíduo.
Ou seja, bons pais respeitam as decisões (mesmo aquelas que consideramos ruins ou loucuras) e a individualidade dos filhos, incentivam a livre expressão dos filhos (inclusive o questionamento das verdades dos pais), têm a mente aberta o suficiente para não sair julgando demais os amigos ou os gostos do filho, tiram dúvidas sobre a vida de forma aberta, compreensiva e não impositiva, não descontam raivas ou frustrações nos filhos, e estão presentes para interagir com eles quando precisarem (ou seja, colocam o bem-estar de seus filhos acima do cansaço do fim do dia após o trabalho).
O lance é: nunca aja como Javé, pois ele não é lá um bom exemplo de pai.