ou Questões antropológicas em Alfa Centauro
O filme Avatar (2009), de James Cameron, apesar de sua trama simples e previsível, apresenta muitos temas relevantes para a humanidade do século XXI. Com uma montagem de cenas perfeita e imagens arrebatadoramente belas e envolventes, consegue sensibilizar para muitas questões pertinentes.
Na primeira parte desta resenha, fiz uma sinopse comentada e uma análise dos nomes de lugares e personagens da trama. Nesta segunda parte, discorrerei sobre temas antropológicos: observação participante, choque cultural, etnocentrismo, relativismo, imperialismo; e, imiscuídas nestes tópicos, questões filosóficas: ética e universalismo.
Choque cultural
Avatar é uma história de choque cultural. Extrapandorianos, humanos, com tecnologia superavançada pousam no mundo dos na’vi e começam um trabalho de exploração capitalista que vai ao encontro do modo de vida dos nativos. Os alienígenas terráqueos consideram importante para os na’vi aprender a língua da Terra (o inglês) e ter acesso a novíssimas e complexas tecnologias que mudarão suas vidas. É a velha anedota do colonizador que traz bugigangas para os índios em troca de pau-brasil e ouro.
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Mas os nativos não precisam de nada que os humanos oferecem. Porém, estes estão ávidos por três coisas: a riqueza material que poderiam extrair do unobtânio, minério caríssimo (Parker Selfridge e sua equipe); a oportunidade belicosa de viver uma batalha (Miles Quaritch e seu batalhão); e a oportunidade científica de descobrir novas realidades geológicas, botânicas, zoológicas e antropológicas. Apenas esta última se justifica racionalmente.
They missed the point, of course. A motivação de um homem que cai ali de paraquedas, o paraplégico Jake Sully, é retomar suas pernas e viver uma aventura. O resultado é que ele conseguiu algo muito mais valioso do que dinheiro, adrenalina guerreira ou descobertas científicas. Ele descobre a importância do equilíbrio natural do universo, através de sua iniciação na sociedade dos na’vi do clã Omaticaya.
Observação participante
Antes de tudo, e repetirei isso adiante, Jake Sully não empreendeu a observação participante propriamente dita, ou seja, o método científico desenvolvido pelo antropólogo Bronislaw Malinowski em seus estudos etnográficos nas Ilhas Trobriand. Ele não usou uma abordagem científica nem estava preocupado com elaborar teorias a respeito da vida dos na’vi. Afinal, ele não era cientista, era um “bebê”.
No entanto (relevando a impossibilidade de se tornar um nativo em qualquer cultura diferente daquela que nos criou desde criança até a idade adulta em apenas 3 meses), podemos ver a experiência de Jake como uma ilustração de como se dá a observação participante, essa que é talvez uma das mais sofisticadas metodologias na Antropologia.
O pouco tempo que Jake leva para se iniciar na vida dos na’vi poderia se justificar (em parte) pelo fato de que terráqueos e pandorianos já tinham bastante experiência uns com os outros, o que não é mostrado no filme. A história começa com uma tentativa de retomada de contato, ou seja, cada uma das duas culturas já sabe bastante sobre a outra. Neste sentido, penso que foi uma perda grande não ter explorado mais o choque cultural, metaforizando as reais dificuldades advindas de um encontro entre alienígenas que nunca haviam ouvido falar uns dos outros (o que a série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração faz bem melhor).
Repetindo, Jake não é antropólogo e não empreende a observação participante malinowskiana. Mas ele entra no clã dos omaticaya de coração e cabeça vazios, o que permite que ele se abra à completa experiência de se mover pelas árvores com agilidade, domar montarias, dominar o arco e flecha e sentir-se conectado à natureza como qualquer na’vi.
Por ser um “bebê” para Neytiri, Jake começa do zero sua imersão. Como nenhum outro cientista conseguiu, por terem as cabeças cheias de expectativas, o ex-fuzileiro está pronto para começar uma nova vida, e somente incorporando a identidade e os costumes na’vi ele consegue entender a mentalidade, a vida e os anseios do outro. Pode-se dizer que ele realizou uma observação participante visceral e não-etnográafica.
Antropologia imperialista
Os maiores desenvolvimentos da Antropologia se deram, paradoxalmente, em situações neocolonialistas. A Grã-Bretanha enviou Malinowski às Ilhas Trobriand porque estas eram colônia inglesa, e conhecer melhor os nativos era importante para uma melhor administração.
Uma crítica que li algures à história de Avatar foi que o escolhido para salvar os nativos era um “civilizado”, ou seja, um humano branco norte-americano, e isso seria propaganda ideológica norte-americana, mostrando quão virtuoso é o povo salvador do mundo. Porém, lembremo-nos que esses norte-americanos do filme são na maioria favoráveis à exploração dos na’vi e de Pandora.
Além disso, Jake deixa aos poucos de ser humano e incorpora a identidade na’vi, tanto que a vida em seu corpo paraplégico passa a ser um sonho ruim e a vida com os na’vi vai se tornando cada vez mais real. Ele realmente renasce como na’vi, e a única coisa que lhe permite ajudar seus novos irmãos é seu conhecimento profundo do inimigo e uma audácia que ele deve mais ao seu temperamento individual e a sua história particular do que ao fato de ser humano branco norte-americano.
Depois de audaciosamente domar um Toruk (”última sombra”, uma espécie de ave extremamente feroz que apenas 5 na’vi conseguiram cavalgar na história dos omaticaya) a nobreza de Jake finalmente se manifesta no ato humilde de oferecer ajuda ao novo chefe do clã, Tsu’tey (que herdou o posto de Eytucan, recém-morto pelos humanos), seu ex-rival, sem clamar para si nenhum posto importante, mesmo sabendo que, ao se tornar Toruk Macto (”cavaleiro da última sombra”), será respeitado por todos os na’vi.
Guerra preventiva ou Pax Romana
A guerra é muitas vezes (irracionalmente) justificada por motivos preventivos, especialmente em situações imperialistas. O que está por trás é na verdade um interesse escuso, normalmente garantir uma posição dominante na relação com o outro.
Foi o que empreendeu o Império Romano com a chamada Pax Romana. Foi o que repetiu o império norte-americano na Guerra do Iraque. E há uma claríssima referência, em Avatar, à política beligerante de George “Warrior” Bush, quando o coronel Miles Quaritch brada que “vamos combater o terror com terror”.
O conhecimento sobre os na’vi tinha o único objetivo de melhor explorar sua lua-natal. Essa abordagem se assemelha muito ao conhecimento do Oriente elaborado pelas nações imperialistas ocidentais. Esse conjunto de saberes, que incluíam vários preconceitos, generalizações e menosprezo, foi chamado por Edward W. Said de Orientalismo e servia de justificativa (irracional) para a dominação.
Esse tipo de atitude preconceituosa é visto durante todo o filme em afirmações que representam os na’vi como animalescos, primitivos, ignorantes, drogados. A conexão bioquímica entre a fauna e flora de Pandora, explicada por Grace Augustine, é ridicularizada por Parker Selfridge: “o que diabos vocês andaram fumando lá embaixo?”
Os exploradores não se permitem a experiência de aprender a cultura local e tirar algum proveito nobre e evolutivo. Talvez a troca tivesse se efetivado se os humanos mostrassem boa vontade de compartilhar uma experiência e não insistissem que são só eles quem têm o que oferecer aos nativos, sendo o unobtânio a moeda e o preço pelo “progresso” trazido da Terra (que, pelo que consta em algumas falas do filme, está com seus recursos naturais esgotados).
A subestimação do “selvagem”
O colunista Jorge Coli, da Folha de S. Paulo, escreveu uma resenha interessante sobre Avatar, na qual ele faz uma referência a Os Sertões, de Euclides da Cunha. Durante os preparativos de um ataque aos revoltosos liderados por Antônio Conselheiro, o coronel Moreira César afirmou: “Vamos almoçar em Canudos”. Ele não esperava que seria tão difícil combater os “brutos” sertanejos, da mesma forma que o coronel Miles Quaritch não esperava perder a batalha contra os na’vi, antes da qual afirmara: “vamos jantar em casa”.
Este é um tema comum em épicos, e se trata de um interessante tema antropológico, pois que toca no relativismo cultural. As grandes civilizações levam seu etnocentrismo a uma escala imperial, considerando que aqueles povos não-assimilados e cuja cultura é considerada inferior não têm condições de resistir a uma guerra (pois, pensam os conquistadores, não têm tecnologia tão avançada nem táticas eficazes) nem à assimilação (pois a cultura do conquistador é considerada melhor e mais desejável).
Porém, a Guerra do Vietnã serve de exemplo real para o equívoco imperialista. Os norte-americanos não esperavam que os vietcongues tivessem a capacidade de, em seu próprio território, resistir e ludibriar os inimigos. O exército norte-americano, por exemplo, se surpreendeu com o uso complexo de túneis, que permitiu aos nativos promover ataques surpresa.
Voltando à ficção, em Guerra nas Estrelas: Episódio VI – O Retorno de Jedi, o Império Galáctico se utiliza dos típicos recursos de um governo expansionista, especialmente a violência física. Mas, com sua avançada tecnologia, não consegue vencer a batalha contra os pequeninos ewoks da lua de Endor, com suas lanças de madeira e pedra, fundas e asas-delta de couro.
Exploração dos recursos naturais e o obstáculo humano
O etnocentrismo imperialista está longe de deixar de ser um problema atual. Se tomarmos o exemplo da influência cultural dos EUA em todas as partes do mundo, vemos que uma relação de dominação ainda se mantém, em que se supervaloriza acriticamente tudo o que é produzido pelos gringos e se subestimas os modos de pensar, viver e até de falar dos povos que vivem em sociedades subordinadas.
A arrogância do conquistador (que age hoje mais no âmbito cultural do que no bélico) o faz tomar a liberdade de assumir a liderança da história de povos “menos civilizados”, como se estes não tivessem a capacidade de “descobrir” o melhor caminho para sua evolução e como se a intervenção externa fosse a melhor das bençãos.
Às vezes essas intervenções podem trazer, a longo prazo, melhorias para os conquistados (que restarem). Mas nem sempre, e sempre é ao custo de muitas mortes e de enormes prejuízos para ambos os lados. Especialmente quando se consideram os produtos naturais cultivados para o bem-estar de uma população (e que poderiam servir para toda a humanidade) como mercadorias a entrar no mundo capitalista, para benefício de uns e prejuízo de outros. E é exatamente o que ocorre na corrida pelo unobtânio (Pandora é uma espécie e Eldorado, onde o ouro é substituído pelo unobtânio): para a RDA, os nativos de Pandora são obstáculos e não parceiros.
Apesar disso, é corrente atualmente o ideário que valoriza a diversidade cultural, e que tem origem no Romantismo alemão de Johann Gottfried von Herder (Também uma Filosofia da História para a Formação da Humanidade). Paradoxalmente, esse ideário pode ter efeitos interessantes para o imperialismo cultural, pois pode dificultar a mudança histórica e o intercâmbio cultural ao cristalizar nichos sociais e valorizar a manutenção das tradições (com a ideia de autenticidade, analisada por Charles Taylor em The Ethics of Authenticity).
É esse ideário que permite a aparição de uma história onde a cultura local de um povo tribal é vista como mais importante do que os interesses egoicos de um empreendimento capitalista. Porém, para ser mais real, a trama deveria deixar mais claro que o contato entre humanos e na’vi deveria trazer grandes mudanças para todos os envolvidos, mas o desfecho dá a entender que tudo só pode terminar bem se tudo continuar como era.
[Continua…]
Publicado originalmente em: Teianeuronial