Avatar (2009), de James Cameron, era um filme cujos trailer e pré-resenhas me deixaram com um pouco de vontade de assistir. Não havia entendido bem a ideia, mas gostara do visual dos personagens alienígenas, esbeltos e azuis, e dos cenários selváticos da lua Pandora.
Mas foi depois de ver algumas pós-resenhas que realmente me motivei a ir ao cinema. Havia, segundo li, uma questão antropológica de grande interesse meu. Antevi uma semelhança com Dança com Lobos (1990), mas, tendo em mente que eu veria clichês e uma trama mais ou menos previsível, preparei-me para as novidades que o filme oferecesse. Ademais, histórias com alienígenas são uma preferência pessoal.
Sinopse estendida
No século XXII, Pandora, um satélite natural do planeta Polifemo (que gira ao redor de uma estrela da constelação Alfa Centauro) constitui uma atração para os humanos, pois é habitada por uma espécie inteligente chamada na’vi. Sobretudo, é uma atração para a economia humana porque essa lua contém um minério valiosíssimo chamado unobtânio. Na realidade, os na’vi podem ser considerados mais um obstáculo do que uma atração, pois a região com maior concentração de unobtânio é protegida por eles como um santuário.
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Pandora é uma boa alegoria para a expressão Inferno Verde (com que os exploradores europeus apelidaram a Amazônia), pois é uma biosfera densa e bela, mas ao mesmo tempo hostil aos humanos, pois possui grandes animais perigosos e é envolta por uma atmosfera tóxica para pulmões terráqueos.
Ela é habitada por exóticos seres inteligentes chamados na’vi, humanoides esquios e azuiss, com 3 metros de altura, cabelos pretos, lisos e longos (como os dos ameríndios), pescoços e membros compridos e caudas preênseis. Possuem grande força, resistência e agilidade e se movem com facilidade pelas florestas em que vivem, portando armas simples como arcos e flechas, cavalgando grandes montarias parecidas com cavalos e animais alados semelhantes a grandes aves com asas coriáceas.
Para explorar o local em busca do unobtânio, que não está em nossa tabela periódica dos elementos, a empresa RDA instala uma base em Pandora, com um programa dividido em duas partes.
A primeira parte desse programa é o Projeto Avatar: corpos de na’vi capazes de portar a consciência de alguns indivíduos humanos selecionados (o DNA desses corpos é uma mistura do DNA na’vi com o do indivíduo humano que o vai controlar), para que estes possam interagir na atmosfera de Pandora e, especialmente, para interagir com os na’vi e negociar a exploração do unobtânio.
Jake Sully, ex-fuzileiro naval paraplégico, entra em cena para substituir seu falecido irmão gêmeo univitelino. Ele assume a responsabilidade sobre o avatar do seu irmão, pois tem o mesmo DNA deste. Grace Augustine, a cientista que lidera as atividades dos avatares, duvida que ele seja capaz de substituir o irmão. Jake fica maravilhado ao redescobrir as sensações e movimentos dos pés e pernas em seu corpo na’vi.
Diferente de seu irmão, Jake não passou por um processo de preparação para incorporar um avatar nem para se comunicar e interagir com os na’vi. Neytiri, a filha do líder dos Omaticaya, clã na’vi com que Sully entra em contato, o considera uma criança, e é sua mente fresca, com muito poucas expectativas, que o permite ser aceito no clã e ser ensinado a ser um nativo. Contra as expectativas de Augustine, Sully consegue melhor do que ninguém incorporar um na’vi.
Ele se torna assim a maior esperança de Parker Selfridge, o diretor maquiavélico da ação exploratória, mostrado como um homem obcecado pelo unobtânio; e de Miles Quaritch, o coronel que comanda a tropa militar que vai empreender a segunda parte do projeto: defender os humanos de possíveis perigos e atacar aqueles que servirem de obstáculo. Quaritch promete a Sully, em troca do sucesso da operação, um tratamento para retomar o movimento das pernas.
Augustine, a cientista; Selfridge, o empresário; Quaritch, o militar. O capitalismo desconsiderou a vida dos nativos, enquanto o militarismo os viu como inimigos. A Ciência, felizmente, compreendeu e passou para o lado dos na’vi.
Sully acaba por frustrar os planos da RDA, tornando-se um na’vi de corpo e alma, domando sua própria montaria alada, entendendo e adotando o modo de vida dos na’vi (aprendendo a viver em harmonia e conexão com a natureza, chamada de Eywa pelos na’vi) e tornando-se parceiro amoroso de Neytiri. A vida como na’vi passa a ser mais real para ele do que a vida como humano, e ele se torna incapaz de trair seus irmãos na’vi e, embora tenha fornecido informações cruciais à RDA sobre o acesso ao unobtânio, tenta de tudo para impedir Selfridge e Quaritch de tomar a terra dos nativos à força.
O híbrido Sully, meio-humano meio-na’vi, encontra-se então no limbo, traidor da empresa que o contratou, pois vai impedi-la a todo custo de violar a liberdade dos nativos; traidor dos que o acolheram como irmão, pois desde sempre não confidenciou o plano original por trás de sua imersão em Pandora.
Em contrapartida, Sully empreende um passo decisivo para retomar a confiança dos na’vi, domando uma fera alada que só grandes heróis do passado conseguiram. Finalmente, tendo informações valiosas sobre seus ex-aliados, que estão em vias de destruir a árvore sagrada sob a qual jaz o unobtânio, ele lidera uma defensiva que livra os na’vi do perigo humano.
Sully completa sua transformação com a transferência definitiva de sua consciência para o corpo na’vi, ganhando de Eywa as pernas prometidas por Quaritch. O selvagem primitivo se torna seu próximo passo evolutivo, mais avançado na superação dos preconceitos inter-raciais e interespécies, na compreensão da interconexão dos seres e da natureza e no entendimento do equilíbrio das forças e energias naturais.
A trama através da nomenclatura
Muitas dos nomes do cenário de Avatar são simbólicos e ajudam a contar a história, pois revelam o destino da trama e a índole de personagens. A começar com o nome do mundo em que tem palco a narrativa: Pandora.
Pandora é uma personagem da mitologia grega, que em algumas versões do mito é considerada a primeira mulher criada pelos deuses. Prometeu havia dado aos humanos o fogo divino, que lhes permitiu sair da barbárie. Após puni-lo, Zeus mandou que Hefesto criasse uma mulher, Pandora, que enganaria Epimeteu, irmão de Prometeu, para que este abrisse a caixa com todos os males que afligiriam a humanidade. Mas ela a fechou antes que a esperança escapasse.
A lua Pandora pode ser vista então como um terreno com valor polivalente para os humanos que ali descem: é ao mesmo a fonte de enormes riquezas materiais, uma selva perigosa que pode matar quem nela se aventura ou uma chance de aprender lições valiosas sobre a alteridade, a natureza e a esperança.
O unobtânio, um aportuguesamento livre da palavra unobtainium, é um metal cujo nome já prediz o resultado da história, pois é um trocadilho com unobtainable, que significa em inglês “inobtenível”, ”que não se pode obter”. Esse minério está no solo em que se enraíza uma árvore sagrada para os na’vi, que a protegerão com suas vidas. A natureza, Eywa, também não deixará que os humanos coletem o valioso metal.
Na’vi, o nome inventado dos habitantes de Pandora, pode ser entendido como uma mistura de nativo (native, em inglês) com o sânscrito Devi. Eles são o símbolo da alteridade na história, o outro que pode ser visto como antagonista não-humano ou, como vem a ser no final, o não-humano humanizado, compreendido como igual. Eles são os nativos colonizados ou que se pretendem colonizar, simbolizando todo os povos exóticos.
Mas ao mesmo tempo são entendidos como seres míticos, como deuses e, talvez, como aquilo a que o humano aspira ser. Eles são Devi, que na mitologia hindu designa as divindades femininas, ou as manifestações femininas da divindade, ou ainda as manifestações divinas do feminino. Os na’vi até lembram, com suas peles azuis, algumas imagens sacras de deuses hindus.
Neste sentido, os na’vi são incorporações da natureza de Pandora, ou Eywa, e representam o antagonista-natureza de caráter feminino, que se opõe à tecnologia bélica de caráter masculino levada pela RDA. Esse antagonismo entre selva e tecnologia, natureza e cultura, feminino e masculino, é instigante como tema de narrativas como Alien: O Oitavo Passageiro, também dirigido por James Cameron.
Também do sânscrito, avatar denomina as encarnações terrenas da divindade, como Krsna e, dependendo da interpretação teológica, Cristo (Deus feito carne). (Essa palavra nomeia, por derivação, as imagens que na internet servem para identificar uma pessoa (seja em bate-papo, em redes sociais, em RPGs online ou em comentários de blog).)
Os humanos que encarnam na’vi no mundo destes são como os avatares hindus, deuses encarnados na Terra. Neste sentido, a lição do filme chega a ser ateísta e humanista, pois esses avatares se deparam com o fato de que são iguais aos na’vi “comuns”. Ao mesmo tempo, é salvacionista, pois é o avatar de Jake Sully quem lidera e salva o clã que o acolhe.
Eywa é a divindade suprema nas crenças dos nas’vi, e poderia ser entendida como a imagem que nós humanos nomeamos de Mãe-Natureza. Eywa lembra Eva, a primeira mulher, e como entidade feminina primordial, Eywa simboliza o mundo dos na’vi, uma interconexão natural.
Segundo Gilbert Durand (As Estruturas Antropológicas do Imaginário), o imaginário se divide basicemente em dois regimes: o diurno e o noturno. Este último é onde as imagens são regidas pela ideia de acolhimento, de aconchego, do abraço, da rede que embala e, envolvendo, protege. Se para o regime diurno a rede é uma teia de aranha que tolhe a liberdade, para o regime noturno, que poderia ser entendido como regido por uma mãe, é acalentamento. Eywa, Eva, princípio feminino, é maternal.
Jake Sully, à primeira vista, é um homem cujo principal objetivo é se ocupar depois que perdeu as pernas e, se possível, tê-las de volta com uma cirurgia. O que muda bastante depois que ele se empolga com o Projeto Avatar, que lhe dá a oportunidade de andar e de conhecer um mundo novo e fascinante. A reviravolta completa acontece quando ele se torna um na’vi, é aceito pelo clã e se une amorosamente a Neytiri.
Sully é um verbo inglês que reporta à ideia de suspeita, ou seja, Jake Sully está todo o tempo sendo vigiado para que suas intenções fiquem claras e se saiba como ele vai agir. Em certo momento, ele se torna traidor em ambos os lados e precisa tomar uma atitude para agir da maneira mais justa.
Grace Augustine, a botânica que escreveu um tratado sobre a flora de Pandora, é Graça Augusta. Se sua importância faz a primeira impressão dela parecer arrogante, ela se mostra uma valiosa aliada para os na’vi em sua luta pela proteção de Pandora, sendo permitida sua entrada na vila dos Omaticaya, que, mais tarde, tentarão salvar sua vida ameaçada por um tiro de Quaritch.
Parker Selfridge está pouquíssimo interessado em entender os outros. A única coisa que ocupa suas preocupações é o self, sua própria trincheira. Os outros ou são ferramentas para ele conseguir o que quer ou são obstáculos a ser derrubados. O estereótipo do empreendedor egoísta e maquiavélico.
Miles Quaritch só tem um objetivo: quarrel, peleja. Ele está a serviço da RDA apenas para combater os na’vi com armas. Ele vai matar quantos nativos forem necessários para executar a meta de Selfridge. Sua índole bélica será decisiva para frustrar qualquer plano diplomático e para criar uma guerra na selva que remonta o sonho guerreiro dos norte-americanos.
[Continua…]
Postado originalmente na Teia Neuronial, em 25/01/2010