Confira a entrevista exclusiva para Carta Potiguar, com Kauara Rodrigues, cientista política e assessora do Cfemea/DF.
Carta Potiguar – Em que contexto a MP 557/2011 foi editada e qual foi a avaliação do movimento feminista e de mulheres?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – A MP foi editada no apagar das luzes de 2011, no dia 26 de dezembro, sem nenhum debate com a sociedade e com o Congresso Nacional já em recesso. Tal medida instala no país um controverso Cadastro Compulsório para Controle e Vigilância das gestantes. Trata-se de proposta conservadora, autoritária que, sob a falsa justificativa de combater a mortalidade materna (uma das metas do milênio que o Brasil não cumprirá até 2015), visa cercear o direito à maternidade livre para as mulheres, impedindo a interrupção de gravidez indesejada e oficializando a gravidez forçada como política do Estado brasileiro. A medida desconsidera a mulher como sujeito das ações de saúde e inclui no texto de uma lei o conceito de direito do nascituro, além de não trazer nenhuma menção à confidencialidade, à privacidade ou ao sigilo médico, violando explicitamente os direitos humanos das mulheres. Após diversas críticas, em janeiro de 2012 a presidenta Dilma reeditou a MP sem o nascituro no seu texto, mas manteve todos os outros problemas apontados.
Carta Potiguar – A previsão de uma bolsa para transporte das gestantes não é uma iniciativa eficaz, já que em algumas regiões o acesso a Hospitais é difícil?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – Diante das gritantes desigualdades sociais do país, iniciativas de transferência de renda são bem-vindas. No entanto, neste caso os índices da mortalidade materna não se justificam pela falta de transporte das gestantes. É importante ressaltar que o problema da mortalidade materna no país está principalmente na falta de qualidade dos serviços e do atendimento prestado às mulheres gestantes e não no acesso ao pré-natal, que tem aumentado significativamente no país. As mulheres estão morrendo dentro dos hospitais e das maternidades! Além disso, o financiamento desse auxílio-transporte ia utilizar recursos da saúde para ação típica de assistência social, o que seria ilegal em nossa avaliação.
Carta Potiguar – A mortalidade materna é um problema real e grave no Brasil, apontando 68 mortes para cada 68 mil gestantes. A MP 557/2011 atende às estratégias previstas no Plano de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) para enfrentar a morte materna?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – Conforme já destacado, a MP não iria previnir ou garantir o combate eficaz à mortalidade materna. Este combate requer um investimento na qualificação e humanização dos serviços, com profissionais devidamente capacitados; no aprimoramento da gestão; na melhoria e ampliação dos serviços; além de ampla disseminação de informação para as usuárias do sistema sobre como ter acesso e cobrar essa qualidade. Pesquisas mostram que por detrás de muitos casos de morte materna estão o racismo e outras formas de violência institucional de que são vítimas muitas mulheres nos serviços públicos de saúde. A MP 557 é uma ação focalizada que cria uma estrutura paralela e vertical e não engloba outras políticas de saúde reprodutiva, como a o Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), de 2004. Além do mais, a Medida Provisória ignorava umas principais causas de mortalidade materna no país: o aborto inseguro. Por tudo isso, reafirmamos que as medidas propostas na MP eram conservadoras, ultrapassadas e insuficientes para estruturar e organizar uma política que reverta este quadro da mortalidade materna no Brasil.
Carta Potiguar – E a Rede Cegonha?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – A MP 557 poderia ser considerada uma medida complementar à estratégia Rede Cegonha, também lançada em 2011. A Rede Cegonha também desconsidera a assistência integral e retoma a lógica materno-infantil, vigente antes de o Brasil adotar o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM (1984).
Carta Potiguar – Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, a MP 557/2011 atende às estratégias previstas no Plano de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM) para enfrentar os problemas ligados a morte materna?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – O texto enviado ao Congresso Nacional não dialoga com agenda dos direitos sexuais e direitos reprodutivos (nem os cita), tampouco com as estratégias já construídas coletivamente, como o Plano Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), de 2004. Nesse sentido, o texto da MP ignorou compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito da ONU e em outros acordos internacionais, especialmente no que diz respeito à Conferência sobre População e Desenvolvimento, Cairo/1994, onde há orientações claras sobre os conceitos relacionados à saúde e direitos reprodutivos.
Carta Potiguar – Na avaliação do Cfemea, que é uma organização feminista que acompanha sistematicamente as políticas para as mulheres no Congresso, como o Ministério da Saúde e Governo Federal vem investindo em políticas de saúde integral da mulher?
Kauara Rodrigues (Cfemea) – De forma absolutamente insuficiente. Neste ano de 2012 houve uma nova mudança na metodologia do PPA – Plano Plurianual. Atualmente há um único programa sendo desenvolvido pelo Ministério da Saúde, de Aperfeiçoamento do SUS (2015). As metas dele relacionadas às mulheres evidenciam que quase todo o esforço está orientado às fases de gestação, parto e puerpério e muito pouco para a atenção integral à saúde da mulher. Das 20 metas definidas no PPA, 16 são exclusivas para a fase de gestação-parto-puerpério. As outras estão relacionadas ao câncer mamário e do colo uterino e à prevenção e tratamento de HIV/AIDS, que não cumprem os compromissos firmados na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM).
No programa 2015, “Aperfeiçoamento do Sistema Único de Saúde (SUS)”, o Orçamento Mulher monitora 35 ações. Dessas, somente quatro são especificamente, ainda que não exclusivamente, voltadas para as mulheres, e representam cerca de 0,4% dos recursos. Para a ação 6175, “Implantação e implementação das políticas de atenção integral à saúde da mulher”, sobram apenas 0,02% do total do orçamento do programa do Ministério da Saúde, cerca de R$ 13 milhões.
O maior exemplo de qual é o foco do governo na questão da saúde da mulher é justamente o programa Rede Cegonha que, de acordo com a justificativa do governo, é um programa para a saúde das mulheres, mas o seu foco é o atendimento à gestação, parto e puerpério. Não que o atendimento materno-infantil seja menos importante ou tenha que ser negligenciado, mas nossa reivindicação é que o planejamento orçamentário do Ministério da Saúde garanta o atendimento de qualidade tanto para as mulheres que decidem ter filhos, quanto para as que decidem interromper a gestação. Isso significa incorporar a perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, que não ignora, por exemplo, o atendimento ao abortamento inseguro, uma das maiores causas de morte de mulheres no país. Além disso, é preciso avançar na formulação de ações para as outras fases da vida das mulheres. Nosso direito à saúde não se restringe a idade reprodutiva. Observamos que as metas e objetivos do Programa de Aperfeiçoamento do SUS relativas à saúde das mulheres são, na verdade, metas e iniciativas que atendem a momentos específicos relacionados à maternidade e não têm consistência para formar uma política ampla, efetiva e integral. Enfrentar a tendência de redução das políticas para as mulheres à especificidade materno-infantil e garantir o cumprimento dos objetivos do PNAISM são as nossas maiores demandas para o Ministério da Saúde.
Para mais informações sobre o monitoramento do Orçamento Público realizado pelo CFEMEA, ver a recente publicação “Qual o orçamento para a saúde das mulheres?”, disponível em: http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_jdownloads&Itemid=128&task=view.download&cid=96
7.O que representa para o movimento feminista a MP 557/2011 ter perdido validade? Foi uma conquista popular?
O fato de a equivocada Medida Provisória nº 557/2011 ter perdido a validade no dia 31 de maio, no mês de combate à mortalidade materna (comemorado em 28 de maio) representa uma importante vitória da incansável ação articulada dos movimentos feministas. É uma conquista alcançada a partir da conjugação de esforços com vários movimentos que atuam no campo da saúde e dos direitos humanos. Expressa, ademais, a autonomia política de segmentos da sociedade civil organizada frente ao governo, componente indispensável à defesa de direitos. Pode também ser considerada uma conquista para todas as mulheres e uma conquista popular democrática, na medida em que foi capaz de impedir a votação de uma medida retrógrada, corporificada em um instrumento autoritário, resquício do período da ditadura militar, como é uma Medida Provisória. Defendemos políticas públicas construídas de forma coletiva e democrática, com diálogo e participação popular.
Por fim, reafirmamos que para reduzir a mortalidade materna no Brasil, e punir seus responsáveis, é imprescindível o imediato investimento, financiamento e monitoramento da implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher/ PNAISM e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Lei n. 12.228/11). Para além da atenção ao parto, é necessária atenção ao planejamento familiar, a utilização de parteiras tradicionais em determinados contextos, orientação ao pós-abortamento e aborto legal, o uso de tecnologias apropriadas, o atendimento profissional capacitado e a atenção institucional ao parto, prevenção e cuidado ao câncer, atendimento às mulheres com HIV/AIDS, enfim, estratégias que ultrapassam a visão momentânea materna infantil e garantem a redução da morte materna, considerando a integralidade da saúde da mulher.