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Filme “REC” e os monstros contemporâneos

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Longe dos pastiches dos atuais filmes sobre zumbis, o espanhol “REC” (2007) faz jus à saga iniciada por George Romero em 1968 com “A Noite dos Mortos Vivos”: os zumbis são vistos por um ângulo diferente como um problema de epidemiologia e vigilância sanitária (repórter, cinegrafista e bombeiros presos em um prédio posto em quarentena enquanto o vírus se propaga e zumbis pululam por todos os lados). Por isso, “REC” faz parte de imensa galeria de novos monstros que vão dos zumbis de Romero à criatura de “Cloverfield – Monstro” (2008) que romperam com o paradigma clássico da monstruosidade (“o disforme, o feio e o mau”). O que há por trás dessa mudança da representação dos monstros no cinema contemporâneo?

O filme inicia com uma jovem e telegênica apresentadora (Angela Vidal) do programa “Enquanto Você Dorme” que apresenta a vida daqueles que trabalham nas madrugadas. Nessa noite Angela, junto com o seu cinegrafista Pablo, vai passar a noite em um agrupamento de bombeiros para mostrar sua rotina. Percebemos que a narrativa transcorrerá por meio da tensa estética de ponto de vista de uma câmera de mão, pontuada pelo liga-desliga da câmera, trepidações, e longos plano-sequência tal como a estética dos já clássicos filmes como “A Bruxa de Blair” e “Cloverfield-Monstro”.

Tudo transcorre em amenidades sobre a vida dos bombeiros até o agrupamento receber um chamado sobre uma senhora que supostamente estaria presa em um apartamento, gritando histericamente e deixando os vizinhos assustados. Angela, Pablo e mais dois bombeiros entram no prédio e são recebidos por um apavorado grupo de moradores e dois policiais diante de uma sinistra escada em espiral que conduzirá ao apartamento onde se iniciará o pesadelo: lá encontram uma senhora idosa, em pé, transtornada e enraivecida com a pele repleta de espécie de feridas e pústulas. Ela investe contra um deles e morde violentamente o pescoço provocando uma hemorragia fatal.

De um momento para o outro a situação se converte em um infernal pesadelo: quando tentam sair do prédio descobrem que a polícia fechou todas as saídas, agentes sanitários estão lacrando o prédio sob um inédito “protocolo NBC” que se usa frente a ameaças de armas nucleares, biológicas e químicas. Todos caem em si. O prédio está infectado por uma bizarra doença que enlouquece tornando-as espécie de zumbis raivosos que atacam as vítimas para comê-las ou apenas mordê-las, transmitindo a doença por meio de sangue e saliva.

Vemos tudo como fosse uma reportagem ao vivo onde a câmera leva encontrões, sofre problemas com o som e está sempre em movimento. Para alguns espectadores esta estrutura que o filme apresenta pode tornar-se algo confusa e as pessoas podem sentir-se desorientadas em muitos trechos do filme em que não sabemos exatamente o que se está a passar à nossa volta. Porém, é exatamente esta estrutura de “reportagem televisiva” que confere um realismo assombroso à película e nos faz sentir como se estivéssemos também encurralados naquele prédio maldito. A realização e as interpretações (absolutamente críveis) dos atores fazem-nos sentir como se tudo aquilo estivesse acontecendo em tempo real.

O filme “REC” a princípio parece mais uma continuação da saga de zumbis iniciada por George Romero em “A Noite dos Mortos Vivos” em 1968. Porém, nesse filme espanhol há uma novidade que vai muito além dos pastiches que os filmes do gênero se transformaram:

o problema dos zumbis é abordado pelo viés da epidemiologia e vigilância sanitária. Uma estranha mutação do vírus animal da raiva contamina os humanos e animais de estimação, levando as autoridades a aplicar um protocolo onde se tenta isolar a irrupção viral no interior do prédio, evitando a epidemia.

Uma teratologia no cinema

Em postagem anterior sobre o filme “Crash – Estranhos prazeres” (veja Links abaixo) discutiamos como a ferida e o sangue foram fetichizados e erotizados, principalmente no gênero terror com a proliferação de “monstros moles” deformados, caracterizados por feridas, queimaduras, pústulas e demais deformidades. 

Desde “A Noite dos Mortos Vivos” acompanhamos a criação de universos fantásticos que pululam de monstros. Cinema, televisão, literatura etc., tem-nos fornecido uma impressionante galeria de exemplares: proteiformes como “A Coisa” (1982) de Carpenter; o cruel “Alien” (1979) com uma morfologia híbrida envolta em gosma que serviu de modelos para todos os futuros aliens e seres híbridos resultantes de manipulações genéticas; “Um Lobisomem Americano em Londres” (1981) que inicia a contemporânea visão do Lobisomem centrada na transformação e instabilidade morfológica dos efeitos especiais; zumbis de todas as espécie e variações como feridas e pústulas ambulantes que deixam para trás pedaços dos próprios corpos etc.

Essa galeria de novos monstros aponta para uma quebra de paradigma entre o monstro atual e o clássico. Essa alteração do gosto e da estética da monstruosidade certamente é a expressão de uma alteração na sensibilidade cultural contemporânea, o que exigiria um estudo especializado, uma “cineteratogia”. Se a Teratologia é a “ciência dos monstros” (ramo da ciência médica), isto é, o estudo de como o meio ambiente pode produzir deformações pré-natal, seria necessário um estudo midiático sobre como as transformações dos ambientes sócio-culturais alteram as expressões da monstruosidade e a sensibilidade ao terror e o horror.

Até o divisor de águas (ou de sangue) de George Homero temos a representação clássica do monstro como nos filmes de terror inglês da Hammer com clássicos sobre Drácula, Estripadores e lobisomens ou ainda narrativas inspiradas em contos de Edgar Alan Poe. Podemos definir a monstruosidade clássica a partir de um quadro de categorias de valores como: o disforme, o mau e o feio. Todos os protótipos de monstros vão ser construídos como desvios desse quadro de valores. Daí a origem etimológica da palavra “monstro” como aquilo que se mostra para além de uma norma (“monstrum”). São monstros antropomórficos ou quimeras mas, de qualquer maneira, com uma morfologia que pode ser julgada a partir de valores como a conformidade e beleza.

Ao contrário, os monstros contemporâneos a partir dos zumbis de Romero estão longe de adaptarem-se às categorias clássicas de valores, mas suspendem-nas, anulam-nas e neutralizam-nas. São os monstros caracterizados pelas instabilidades e metamorfoses.

O fim da disformidade, do feio e do mau

Para começar os monstros pós-modernos não são disformes, mas informes: eles estão se despedaçando ou se deformando e precisam devorar o outro para tentar se reconstituir; “A Coisa” de Carpenter que assumia a forma humana de cada uma das vítimas na base polar na Antártida; ou no filme “REC” onde o “zumbismo” tem origem viral, isto é, o vírus como modelo de informidade por excelência: ele assume a forma que quiser de acordo com o seu hospedeiro. Há uma suspensão morfológica.

Do ponto de visto ético os monstros atuais não são nem bons nem maus: tratam-se de predadores que, do ponto de vista da performance evolutiva, são fascinantes máquinas de sobrevivência. Em “Alien”, por exemplo, um dos membros da tripulação tenta salvar o espécime alienígena por ser um fascinante modelo de adaptação e evolução. Há uma neutralização ética: ele não é mais um desvio da moralidade, mas o aprimoramento racional da performance de um ser que na sua evolução transforma o ser humano em presa.

Por isso em REC os zumbis não são maus. O comportamento raivoso e violento é inimputável de qualquer julgamento moral. São apenas manifestações de um vírus mutante, um problema de epidemiologia.

E há uma anulação estética: por um lado existe uma expressão da monstruosidade através de  elementos “feios” (tentáculos, viscosidades, ruídos desagradáveis, purulências etc., mas ao mesmo tempo há o maravilhamento do espectador pela complexidade dos efeitos especiais. Se no terror clássico a feiura estava na sugestão dos planos e no jogo de claro e escuro da fotografia que remetia à iconografia imaginária das aberrações expostas nos antigos parques de variedades, agora o detalhamento dos efeitos especiais e CGIs cria uma espécie de fascínio metalinguístico: como isso pode ser feito?