Quando chove na cidade do Sol, o mar embriagado explode em ressaca nos calçadões, a chuva cai com um chiado calmo e insistente durante dias, e às vezes, desata em uma torrente intempestiva e alvoroçada que duram poucos minutos, como que para lembrar aos seus habitantes que ainda chove na cidade do Sol. O céu cinza, desbotado, a luz fraca, transformam seus habitantes em seres nublados.
A cidade do Sol derrete, se dilui, volta a ser lagoa, reclama a sua geografia original, ao tempo em que era água e duna. A cidade se torna mais metrópole quando chove, talvez porque o cinza do cimento se confunda com o cinza do céu, talvez porque o frio – embora brando – dá uma certa frieza metropolitana aos seus habitantes. Mas, a salvo da chuva, protegidas em sua inocência, estão às crianças, banhando-se nas torrentes que emanam dos telhados, ou divertindo-se no riacho que corre pelos canteiros. Elas continuam brincando enquanto chove na cidade do Sol.
As mais formosas e coloridas sombrinhas florescem nas mãos das senhoras honestas quando chove na cidade do Sol, como quem já se rendeu a chuva, como quem se entrega ao algoz, como quem aceita o destino. Já os estudantes usam cadernos e livros como guarda-chuva enquanto torcem para que sua escola seja inundada. Alguns transeuntes correm, outros andam na chuva, outros xingam os motoristas que os banham, outros praticam salto à distância em poças d´água.
Não parou mais de chover na cidade do Sol, os carros sumiram das ruas, como outrora, durante a chuva, sumiam às jangadas do mar. Os ônibus entraram em extinção e caça-los o dia inteiro no ponto tornou-se a principal atividade dos habitantes da cidade do Sol, não se sabe mais se estão caçando o ônibus, ou o Sol.
Os outrora alegres e acolhedores habitantes da cidade do Sol, agora, tornaram-se impulsivos e fleumáticos, ignorantes e impetuosos.
A cidade do Sol herdou às faculdades de Apolo, o deus do Sol: é bela, de porte aristocrático (leia-se oligárquico), vive da aparência e da superficialidade, por isso é sonhadora, presa em um futuro que nunca chega e em um passado inventado. Mas tudo mudou quando a chuva resolveu não abandonar a cidade do Sol. Houve o tempo em que a cidade acreditava que devia mostrar-se, brilhar, aparecer, porque é um desperdício ser bela e não poder mostrar-se. O que seria do Sol sem algo para iluminar? Mas agora o Sol se escondeu e a cidade já não tem mais nada para mostrar, tornou-se feia e rejeitada.
O mesmo Sol severo que outrora torrava as cabeças também as unificava e as clarificava, transformando morenos em galegos e galegos em morenos, lhes dando vigor, jovialidade, beleza, senso de unidade e comunhão, quando a chuva não passou, a ausência do Sol, mais do que a presença da chuva, tornou a cidade um caos porque o Sol não pôde mais torrar as cabeças de seus habitantes. Eles não eram mais os morenos galegos ou os galegos morenos torrados na cidade do Sol, agora eram diferentes, ávidos por inventar sua diversidade e mais ávidos ainda para lutar por ela.
A chuva na cidade do Sol se infiltrou na alma de seus habitantes, afogando-a, desbotando-a aos poucos, tornando-a outra: mais séria, taciturna, menos porque suas ruas, canteiros e calçadas ficaram completamente alagadas, e mais porque o céu, embora mais brando e menos fustigante, ficou mais triste e suas lágrimas, ao cair, congelavam dentro da alma de seus habitantes. A cidade do Sol é movida a energia solar, sem ela seus habitantes perdem força, vitalidade, e ao mesmo tempo – como consequência disso – tornam-se irritadiços, ressentidos, revoltosos. Até há quem brada por revolução! Quando chove na cidade do Sol.
Há muitos anos chove na cidade do Sol, acreditam que agora se tornou a cidade da garoa, com seus arranha-céus que buscam a chuva e escondem o Sol, chegam até a acreditar que a chuva foi uma benção. Mas ainda há aqueles que quase por teimosia, ou loucura, creem que o Sol ainda esta lá, embora ninguém o veja, acreditam que não foi o Sol que abandonou a cidade, mas a cidade que abandonou o Sol.
Até quando vai chover na cidade do Sol?