A recente divulgação dos nomes que comporão a Comissão da Verdade causou um esperado rebuliço dentre os que de alguma forma lhe são contrários. Previsivelmente, repetiram as já enfadonhas acusações de revanchismo e unilateralidade dos seus membros, assim como, obviamente, clamaram pela responsabilização dos militantes de esquerda que se envolveram na luta armada contra o regime.
Comove bastante a fragilidade com que os defensores diretos e indiretos do regime entoam teses capitaneadas por lunáticos como o deputado Jair Bolsonaro. Uma espécie de reação mecânica a qualquer assunto que tenha como pano fundo a responsabilização dos torturadores, hoje imaculados senhores de meia idade que vivem com a frugalidade dos que nunca hesitaram em enfiar fios desencapados nas uretras de vermelhinhos acusados de subversão.
Mas o que parece ser a mãe de todas as falácias, como já colocado, é a da necessidade de responsabilização de ambos dos lados. Reconhecem, implicitamente, a existência das monstruosidades cometidas pelos militares, mas, lançando mão do tu quoque, atacam que o outro lado também matou (certo) assim como torturou (nem tão certo assim, pois nem o sujeito que mais ilustremente encampou esta tese, o ex-ministro Jarbas Passarinho, consegue dar detalhes sobre ela).
Colocam também que os que se envolveram na luta armada “contra-revolucionária” tem que sofrer da mesma forma as penalizações de acordo com a legislação atual. Esquecem-se, todavia, que estas mesmas pessoas já se submeteram às peias da ‘legalidade’ dos anos de chumbo, seja por meio de prisões, torturas ou exílios – isso quando não pereceram nas catacumbas do DOPS e do DOI-CODI enquanto cabos de vassoura eram enfiados em seus ânus. Bradam que estes sujeitos sejam responsabilizados mais uma vez, agora sob o pálio da Constituição de 1988, em um autêntico exercício de bis idem, ou dupla responsabilização penal pelo mesmo fato, algo categoricamente vedado pela mesma Constituição.
Ausência de legalidade e crimes estatais
Não suficientemente, esquecem-se também que não havia uma legalidade propriamente dita à época, onde a tônica de funcionamento das decisões estatais se condicionava não à lei, mas ao intocável alvedrio dos generais que, sob a forma dos famigerados decretos-leis e atos institucionais, ordenavam de acordo com as conveniências políticas da ditadura e até mesmo com base em suas sandices pessoais, a exemplo da institucionalização dos intempestivos surtos do sangrento general Médici. Falar de legalidade em regimes de exceção soa tão patético quanto tentar ensinar um bovino a dançar arrocha.
Além do mais, trata-se aqui de crimes cometidos pelo Estado, o que dimensiona ainda mais as violações cometidas; desumanizações idealizadas em nome de uma estrutura política e ideológica militaresca, onde cada morte, tortura e desaparecimento levam a marca do próprio Estado que, além do monopólio da violência (aqui voltado para a consecução de interesses claramente não-republicanos) dispõe de largo aparato de repressão, investigação e patrulha contra seus administrados. Não é possível, portanto, comparar infrações cometidas por particulares àquelas cometidas através da implacável força de um Estado disposto a externalizar todo o seu ímpeto repressor naqueles em quem melhor lhe convir. Não dá, definitivamente, para colocar ambas na mesma balança.
Se a legalidade estava a favor das oscilações de determinada cúpula com membros auto-entronados regentes absolutos da nação, não era a população obrigada a se submeter a ela, ilegítima que é por não ter o aval do verdadeiro titular do poder que é o povo. A desobediência civil, nesses casos, é conclamada como uma justa forma de reação popular contra a imposição de uma ordem plenamente alheia aos seus desígnios. Assim John Locke, em seus escritos sobre desobediência civil, coloca: “donde fica claro que o repúdio a um poder que a força e não o direito instalou sobre alguém, embora tenha o nome de rebelião, não constitui contudo ofensa a Deus, mas é o que Ele permite e aprova…”. Além de Locke, a desobediência civil a uma ordem ilegítima do ponto de vista popular é democrático foi objeto de estudos de filósofos do porte de São Tomás de Aquino e Henry David Thoreau, destacando a necessidade de resistir aos programáticos abusos e extorsões estatais contrapostos aos imanentes direitos civis e políticos das coletividades.
Fragilizações
A Comissão da Verdade, entretanto, nasce fragilizada, imbuída apenas de poderes investigativos, salvaguardando torturadores como Carlos Alberto Brilhante Ustra de qualquer responsabilização. Quadro diverso é o que vem ocorrendo em países como Argentina, Chile e Uruguai, onde militares da reserva vem sendo peremptoriamente condenados à prisão.
Afinal, o caráter de imprescritibilidade dos crimes e violações de direitos humanos cometidos durante a repressão não pode ser esquecido quando da análise dos atos cometidos neste período, como categoricamente colocou a Corte Interamericana de Direitos Humanos em decisão de novembro de 2010 (em clara resposta à decisão do mesmo ano do STF em ratificar a patética dupla anistia aprovada em 1979 por um já moribundo regime): “são inadmissíveis as disposições de anistia, prescrição e estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações de direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas”.
Além disso, o período de análise partirá não de 1964, mas de 1948, em mais uma vitória do lobby dos militares – que tinham em suas trincheiras o ex-ministro da defesa Nelson Jobim – em pôr obstáculos às investigações. A Comissão da Verdade também garantirá aos militares o mesmo direito de defesa que, com exceções capengas – vide o julgamento-farsa dos monges dominicanos em 1971, narrado com detalhes na premiada obra Batismo de Sangue, de Frei Betto, – não garantiram aos acusados de subversão ou de “crimes anti-sistêmicos”, nas senis palavras do general Leônidas Pires em recente entrevista à Globo News.
Diante de tamanhas limitações à atuação da Comissão, os ataques à nomeação de seus membros soa como o exemplo do time de futebol que, vencendo de quatro a zero aos quarenta e cinco do segundo tempo, arranja forças para reclamar ao juiz a anulação de um chorado único gol da equipe adversária. Ao final, com gol ou sem gol, o resultado continuará o mesmo.