Por Ruy Braga
O ataque aos direitos sociais na Europa defende os interesses da oligarquia financeira; estamos vendo o tempestuoso início de uma era de luta de classes
“Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo
É preciso estudar”
Deolinda, “Parva que eu sou”
Após a Segunda Guerra Mundial, o crescimento econômico europeu, associado à institucionalização de direitos sociais, pareceu eliminar a insegurança da relação salarial. Ainda que boa parte do trabalho intermitente e sub-remunerado continuasse sendo atribuída a jovens imigrantes, a combinação da proteção do trabalhador nacional com o consumo de massas (ou seja, a promessa do Estado social) se transformou em um poderoso amortecedor da luta de classes.
No início dos anos 1980, François Mitterrand resgatou do desterro o projeto da União Europeia. Aquela promessa ajudou uma Europa que tinha acabado de sair de ditaduras filofascistas (em países como Espanha e Portugal) e de uma experiência de luta armada (como na Itália e na Alemanha) a enfrentar a competição com o neoliberalismo estadunidense. Mesmo refém dos limites fiscais impostos pelo Tratado de Maastricht (um teto de 3% de déficit orçamentário), um continente unificado pelo binômio “eficiência e proteção” seduziu vários países do ex-bloco soviético e também parte significativa da imaginação política progressista global.
A atual encruzilhada europeia quebrou a promessa: os ajustes baseados na eliminação de direitos e os cortes orçamentários impostos pela “Troika” -a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional- recolocaram a insegurança no coração da relação salarial. Os alvos foram as economias mais castigadas pela crise econômica. Primeiro foi a Grécia, seguida de perto por Portugal e pela Itália. A recente rebelião do “precariado” europeu (ou seja, aquele setor da classe trabalhadora formado por jovens à procura do primeiro emprego, imigrantes e trabalhadores temporários) representa não apenas o fim de um ciclo de expansão econômica, mas o tempestuoso início de uma era de luta de classes.
“Geração à rasca”, “Movimento 15-M”, “Anonymous”… Não importam os nomes, a crescente degradação da proteção aos assalariados trouxe para a cena política uma fração de classe espremida entre a ameaça da exclusão social e o incremento da exploração econômica. A luta de classes tende a se orientar pelas características desse jovem “precariado”: trata-se de uma geração mais educada e internacionalizada do que seus pais, integrada “horizontalmente” em redes informacionais, além de divorciada por completo do pacto social do pós-guerra. Isso faz com que tanto a forma como o resultado da luta se tornem menos previsíveis.
Alguns sociólogos (como Guy Standing e Robert Castel) se referem a esse jovem “precariado” como uma “nova classe perigosa”. Eles estão acompanhados pelas autoridades políticas: na semana passada, às vésperas do anúncio de mais um plano de “austeridade” e diante de uma greve nacional de taxistas e caminhoneiros que ameaçou bloquear as principais rodovias do país, o primeiro-ministro italiano, Mario Monti, um economista e dublê de político escolhido a dedo pela “Troika”, fez uma exigência. Ele queria mais empenho dos governos da Alemanha e da França para baixar os custos do endividamento italiano. (Em 2012, a Itália precisa rolar € 320 bilhões a uma taxa de 7% ao ano.) Para fortalecer a sua reivindicação, Monti evocou o “perigo” da ação intempestiva dos trabalhadores na periferia da eurolândia. A bravata de Monti errou o alvo. Até agora, o jovem “precariado” demandou apenas que os governos honrem a promessa feita a seus pais. O perigo está no amplo ataque aos direitos sociais orquestrados pela “Troika” a fim de salvaguardar os interesses da oligarquia financeira. As verdadeiras “classes perigosas” não são as que combatem nas ruas e nas praças. Elas estão confortavelmente instaladas nos escritórios da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu.
Publicado originalmente na Folha de SP.
RUY BRAGA, 39, é professor do departamento de sociologia da USP e autor de “A Nostalgia do Fordismo: Modernização e Crise na Teoria da Sociedade Salarial” (editora Xamã)