Quando nos achegamos a uma conversa seja no bar, no Facebook, na família, na escola ou em qualquer outro meio, frequentemente nos pecebemos (ou não) cerceando a liberdade dos outros por 1) considerarmos a nossa ofensa subjetiva como superior ao direito do outro se expressar ou ser como é, por 2) termos em mente a ideia de que temos de decidir o que achamos ser melhor para o outro, ou por 3) acreditarmos que o outro só será feliz se for e agir como nós. É a liberdade entrando em crise. O modo de ação do outro, enquanto não prejudicar nenhum outro ser humano no processo, é tão válido quanto o nosso, mas não queremos aceitar isso. Queremos entender que as drogas fazem mal à saúde, e, portanto, podemos em privar alguém de fumar crack se assim o desejar, mesmo que seja essa uma decisão racional e livre sobre o próprio corpo.
Foi precisamente isso que vi na Universidade no mês passado. Estava conversando com um amigo sobre coisas pessoais, zoando com nós mesmos e com outros de nossos amigos, e de repente um ex-colega nosso do curso de Letras nos abordou. Ele sentou-se ao nosso lado, interrompendo uma conversa divertida sem ser convidado, e veio me perguntar:
– Que história é essa de você agora ser budista? Por que abandonou a religião cristã e tornou-se budista?
Minha resposta resumiu-se a um: “acho que não preciso ficar explicando por que sou budista”. Pois é, meus amigos sabem porque escolhi o Budismo, minha família sabe, e alguns de meus leitores sabem, mas é algo que explico aqui e ali. Não preciso ficar explicando isso. Ele me respeitou (mais ou menos). Não demorou, e ele começou a defender o Nazismo como algo benéfico para a humanidade, como se fosse algo que precisássemos em determinado momento, e, portanto, fosse convertido de forma estranha em sua cabeça em uma forma de “benefício social”. Ao que respondi: “o fato de ter tido bons resultados na medicina não significa que tenha sido um caminho ético, e muito menos que não tivéssemos de evitá-lo caso se repetisse”. Mas ele ainda falou alguns minutos, ignorando o fato de que sou budista, de que venho de uma família de sangue misto (principalmente cigano e judaico), e de que meu amigo é negro. Acho que o “defensor” do Nazismo ignorou o fato de que ele próprio é nordestino, quase sempre o primeiro alvo dos grupos neonazistas paulistanos. Mas deixei ele falar, afinal, prezo pela liberdade expressão, mesmo que a expressão do outro me ofenda, pois prefiro mil vezes ter de ouvir besteira a não poder falar besteira nenhuma.
Porém, qual o limite ético dessa liberdade de expressão que espontaneamente concedi? E das demais liberdades? Em que elas têm de ético, filosófico, universal, absoluto e inalienável sobre outros indivíduos? Quais os limites que o Estado deve estabelecer sobre a liberdade alheia?
A Liberdade pode ser entendida como um princípio que rege a autonomia nas ações individuais, mas quais os critérios que devemos levantar na concessão dessa autonomia? Para alguns grupos, a autonomia deve ser concedida dentro dos parâmetros que suas concepções morais compreendem como certo e errado. Não se interessam pelo certo e errado na Ética, mas apenas moralmente, localmente, grupalmente.
O problema deles é que estabelecem como princípio de concessão de liberdade os limites impostos por critérios impalpáveis, não universais, relativos a grupos, que consistem em liberdades subjetivas (relativas ao sujeito somente), que são a moralidade (noção de família, alimentação, funções sexuais etc.), a personalidade (modos de ser), a espiritualidade, a concepção estética e a opinião. Nenhuma dessas liberdades deve ser considerada um critério de confiança no estabelecimento dos limites à autonomia das ações.
E quais deveriam ser os critérios, afinal? Ora, as liberdades objetivas: existência (vivo/morto), materialidade (acesso à economia), intelectualidade (acesso à educação), físico (saúde) e linguagem (falar na língua e no nível que quiser). Liberdade total é, portanto, toda e qualquer forma de ação autônoma de um sujeito de forma a garantir-lhe o direito (e não a obrigação) a todas as liberdades objetivas, e o poder de exercer ou não suas liberdades subjetivas, mas apenas de modo a não prejudicar no outro nenhuma de suas liberdades, sejam as objetivas, sejam as subjetivas.
Absolutamente devo ter o direito a ter qualquer preceito pessoal de moralidade, a exercer livremente qualquer tipo de personalidade, a praticar qualquer religião, a apreciar qualquer forma de arte (ou de pretensa arte) e posso ter qualquer opinião que quiser. Tenho plena liberdade de decidir sobre mim mesmo se quero ou não continuar existindo, se quero ou não ser rico (ou trabalhar para tal), se é de desejo meu estudar, se pretendo manter minha saúde, ou se quero ou não usar determinado nível linguístico ou determinada língua. Nenhuma das minhas escolhas deve, porém, interferir no direito do outro ser humano de exercer suas liberdades nesses mesmos aspectos. Claro que outras discussões ficam em aberto, como o direito ao aborto, se posso ou não comer carne, se minha religião pode praticar sacrifícios animais etc. Mas são questões secundárias diante desse escopo ético básico. A liberdade só deveria ser limitada, portanto, pela liberdade do todo.
Daí que temos inúmeros Casos Sociais em que a liberdade humana muitas vezes é limitada por critérios subjetivos, às vezes interferindo nas próprias liberdades subjetivas. É o exemplo do porte de armas: o porte de armas não causa nenhum prejuízo a nenhum outro ser humano, e apenas garante o direito pessoal e inalienável de decidir o próprio destino quando o Estado se ausentar de suas obrigações de manter o cidadão em segurança. Mas essa reflexão poderia ser estendida a outros Casos Sociais.
Por que proibimos a comercialização de certas drogas mesmo? E por que liberamos outras? Questão de saúde pública? ou simplesmente decidimos o que achamos que é melhor para os outros, passando por cima da liberdade do outro de decidir o que fazer com seu próprio corpo? Quer dizer que tenho que diminuir os gastos da saúde com o arrebentar-se privado de um maconheiro, mas tenho de arcar com o arrebentar-se privado de um praticante de paraquedismo? Tenho de arcar com os gastos compartilhados com os demais brasileiros pelos problemas causados pelo álcool, mas o Estado decide proibir por questões de saúde pública por problemas causados pelo crack? Onde está a coerência? Eticamente, mesmo que eu não ache necessário uma pessoa fumar crack, cheirar cocaína ou tragar uma maconha de vez em quando, devo entender que essa é uma decisão pessoal, e parte do indivíduo e da liberdade que ele tem sobre sua própria saúde. A obrigação de todos é fazer a vaquinha e ajudar a pagar, afinal, ele também paga na vaquinha popular para sanar os problemas de saúde de churrasqueiros inveterados.
O mesmo se diz da prostituição, da pornografia, das piadas preconceituosas no stand-up, do direito irrestrito à expressão, do andar pelado nas ruas (algo defendido no FKK, no Nudismo e no Naturismo em diferentes graus), à sexualidade, ao casamento irrestrito entre pessoas adultas, à religião, às formas de alimentação, à autoprescrição médica, à homeopatia, ao direito de amputar membros inteiros do próprio corpo, aos modelos familiares, ao suicídio, à anulação do próprio voto, à defesa de ideologias fajutas (como no caso do meu ex-colega) etc. Enfim, se nenhum desses casos sociais interferir nas liberdades subjetivas ou objetivas de terceiros, e nem impedir sua livre autonomia, por que deveríamos proibí-las? A punição só deveria existir a partir do momento em que, no uso dessa liberdade, causássemos prejuízos objetivos ao outro, ou impedíssemos o outro de exercer sua liberdade subjetiva.
O problema é que a sociedade ainda não aprendeu o processo simplíssimo de conviver com a liberdade do outro. Sempre que um Movimento Social Organizado luta pela liberdade, ele luta por sua própria liberdade, neglilgenciando, e até prejudicando, a liberdade dos demais membros da sociedade. Muito do que defendemos pode ser ofensa para os outros, assim como muito do que os outros defendem pode ser ofensivo para nós. Mas é o preço a se pagar pela liberdade. Aparecer um sujeito que entende o Nazismo como um benefício social pode me ofender, mas é o preço que tenho de pagar se eu quiser uma sociedade que me permita, dentre outras coisas, entender o Coletivismo Libertário Humanista como um benefício social. Enfim, Ética é toda ação que não implique em perda do direito de ação do outro.