Quando a Grécia resolveu-se pela República Democrática como um modelo de governo perfeito não imaginava que a própria Democracia viria a se desenvolver até o nível em que se encontra hoje. Porém, estranhamente, são os países monárquicos que hoje são os mais libertários (Inglaterra, Dinamarca, Suécia etc.) e os democráticos vez por outra caem em pequenas versões de ditaduras locais e, quando damos sorte, breves. A Grécia entendia a Democracia como um governo em que o povo não só participada, como também decidia sobre questões relativas à cidade, ou seja, era um governo promovido pelos cidadãos. O problema da Grécia (e acredito que de hoje também) é o alcance conceitual do termo “cidadão”. Se entendermos a cidadania como algo recluso a determinados grupos, então a Democracia seria uma microversão da Oligarquia. Na Grécia, votavam apenas homens gregos livres, ou seja, qualquer mulher, estrangeiro ou escravo estaria excluído de todo o processo.
A Democracia enquanto princípio é bastante próxima da Anarquia pensada por Bakunin. Apesar de a Anarquia Bakuniniana exigir a presença cada vez menor do Estado e um coletivismo extremo, o que fomentaria a responsabilidade individual frente à coletividade, sua concepção libertária permite uma sociedade centrada nas decisões individuais, que só é possível se a sociedade se organizar a partir de sua base. Bakunin considerava a base os grupos diretamente ligados aos meios de produção, mas hoje podemos entender o indivíduo como sua verdadeira base. E como se faz isso? Pela Democracia. Tudo se resolve pelo pleito, seja na teoria bakuniniana, seja na concepção de Democracia dos gregos. Apesar de bastante similares, elas duas apresentam uma brecha: aquilo que é direito de voto de todos pode se transformar em “ditadura da maioria”.
O que dá à maioria o direito de decidir o que acha que é melhor para a minoria? Que direito 190 milhões de brasileiros têm que lhes garanta decidir no lugar de 10 milhões que estes não podem fazer mal à própria saúde do seu próprio modo e só possam fazer do modo majoritário, e assim iniciar uma campanha Antidrogas? Essa é a falha na própria Democracia, que se evidencia ainda mais em problemas como o direito de voto no Brasil.
Lembremos que o voto é um direito garantido por lei e apregoado como livre, secreto e intransferível. Isso é bom, e deve continuar assim. Desconsideremos por um instante os inúmeros casos de curralismo eleitoral, cabresto partidário e o coronelismo que nos inunda o Oiapoque ao Chuí. Compreendamos precisamente a noção básica de “Direito”, para daí compreendermos em que consiste o fato de que o voto é um direito do cidadão.
Como não fiz direito, só posso falar pela Filosofia. O Direito é todo aspecto abstrato dado em uma sociedade a entidades individuais (empresas, cidadãos, pessoas etc.) que não é obrigatório a essas entidades, mas é permitido a elas caso queiram usufruí-lo e tenham condições para tal. Quando a lei me garante o direito à moradia, não significa que eu seja obrigado a comprar uma casa, e nem que eu tenha condições imediatas de usufruir desse direito, mas apenas que me é permitido, se assim eu o desejar e puder, comprar uma casa.
Em uma Democracia Limitada, isso significa que, se o voto é obrigatório, o não-voto é proibido (não é permitido). Em uma Democracia Plena, se não é proibido não votar, então o voto não é proibido e é permitido. Em uma Ditadura Declarada, é obrigatório não votar, o que significa que o voto é proibido e não permitido. Uma Ditadura pode, às vezes, assumir uma forma semelhante à Democracia Limitada. A saída democrática plena seria, portanto, não obrigar ao voto, nem proibir o não-voto, mas permitir tanto o voto quanto o não voto. Enfim, se o Voto for facultativo, então sua execução ou não tornam-se igualmente permissíveis, e nenhuma das duas sofrerá sanção, e se em um pleito todas as formas de relação democráticas humanas possíveis forem permitidas então será democrático inclusive o direito de anulação do próprio pleito ou será facultativa sua participação.
Isso tudo, claro, no meu mundo dos sonhos, a que o próprio Código Eleitoral Brasileiro (Lei nº 4.737, Artigo 224) deu esperanças:
Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do estado nas eleições federais e estaduais, ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações, e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.
mas o Acórdão nº 13.185/92 do TSE ajudou a desesperançar:
O art. 77 da Constituição Federal, ao definir a maioria absoluta, trata de estabelecer critério para a proclamação do eleito, no primeiro turno das eleições majoritárias a ela sujeitas. Mas, é óbvio, não se cogita de proclamação de resultado eleitoral antes de verificada a validade das eleições.
O critério, claro, é a validação do voto. Porém, o TSE classifica como válidos todos os votos efetivados nas eleições, após descontadas outras categorias de votos (nulos, brancos, duplos etc.). Se 90% da população anular seu voto, apesar de o artigo 244 do CEB dizer uma coisa, o acórdão 13.185 do TSE dirá outra coisa, e as eleições serão decididas apenas pelos 10% de votos válidos restantes do pleito. A eleição não será anulada, e novos candidatos não serão apresentados. No fim, sem legitimação nenhuma, com mais de 51% dos votos de apenas 10% dos eleitores, teremos um candidato vencedor.
Qual a legitimidade dessa decisão, tomada em um pleito sem quorum? Aliás, que Democracia fajuta é esta em que vivemos que cria-se um mecanismo para invalidar uma decisão do próprio povo, que pode estar insatisfeito com todas as propostas lançadas pelos partidos? Se o Poder Judiciário está totalmente fora do controle popular, se os candidatos lançados pelos partidos não passam pelo crivo do povo, se as propostas gerais para o governo não são plenamente divulgadas e se os presidentes de Tribunais de Contas e de Comissões de Ética nem mesmo são votados por nós, cidadãos, onde está a Democracia? É governo do povo ficar refém de poucas opções, em um espaço limitado, e tendo suas ações populares e atitudes diante do próprio pleito invalidados pela própria lei? Não, não é. Se a Democracia fosse plena, todos os representantes de todos os poderes do Estado passariam pelo crivo popular. Há Democracia em um país em que você é obrigado a votar, seu voto nulo não é válido e seu poder de controle e decisão sobre quem você votou é reduzido a quase zero? Não, não há. A Democracia preconiza, devido à sua própria natureza, o direito de escolha centrado no indivíduo. Você não deveria votar em alguém porque ele defende seu grupo, mas porque ele vai administrar um bem (o Estado) cuja posse você compartilha com todos os demais cidadãos, inclusive os pertencentes a outros grupos.
Democracia plena e participativa, portanto, se definiria como aquela em que não há legitimidade em decisões votadas sem quorum, em que o povo pode invalidar a própria eleição se não estiver satisfeito com os candidatos, em que as propostas dos partidos e os próprios candidatos são escolhidos pelo próprio povo, em que um desembargador e um presidente de Tribunal de Contas são escolhidos por voto popular, em que membros de Comissões de Ética são votados nas urnas, em que um indivíduo pode se abster da votação se assim o desejar, em que os interesses do indivíduo salta direto para os interesses do Estado sem precisar de interesses intermediários de grupos.
Quando entendermos que Direito e Obrigação são duas coisas distintas, e que o voto é uma conquista, e não uma imposição, compreenderemos realmente o que é uma Democracia. Logo, para que não transformemos a Ditadura (de maioria ou de minoria) em uma derivação da própria Democracia, temos de cuidar para que a decisão do povo seja respeitada EM TODA A SUA PLENITUDE, permitindo a livre abstenção de quem assim o decidir. A obrigatoriedade de participação nega o próprio princípio libertário da Democracia.