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O consumo de drogas na UFRN e como lidar com o tema

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Por Alyson Freire e Carlos Freitas

 

Imagem: cagrimmett

A universidade é o espaço por excelência da problematização dos dilemas culturais e sociais de nossa civilização. Nesse espaço, relativamente desprendido das pré-noções do senso comum, indivíduos e coletividades podem submeter ao debate reflexivo e equilibrado, temas socialmente delicados e permeados de pré-julgamentos, suspendendo estigmas e preconceitos que se reproduzem muito mais por força do hábito e dos discursos simplificadores (Mídia, Polícia, Igrejas) do que por entendimento racional dos fatos e suas implicações.

Dentre esses dilemas sociais, um, em particular, destaca-se por sua recorrência e generalidade nas universidades brasileiras, porém tal dilema é ao mesmo tempo o mais estigmatizado pela sociedade e o menos discutido e enfrentado pelas universidades. Trata-se da questão do consumo de drogas no interior do campus. O problema da existência de usuários, e mesmo “viciados” em drogas pesadas na universidade é um problema de fato e que merece o reconhecimento e a atuação institucional.

Nesse debate, repleto, por um lado, de fórmulas prontas alarmistas, discursos redutores e preconceitos e, de outro, por discursos românticos e de mistificação das substâncias psicoativas, o que menos se discute é sobre como intervir na questão em pauta. A falta de real diálogo e de ação efetiva em favor do etiquetamento de rótulos – conservador, fascista, vagabundos, traficantes, etc. – por proibicionistas e anti-proibicionistas cumpre tão somente a função de impedir que a universidade intervenha decididamente sobre o consumo de drogas.

A questão central a ser debatida e enfrentada por professores, pesquisadores, funcionários e estudantes diz respeito a colocar a seguinte indagação: como abordar o consumo de drogas no campus evitando que este tome dimensões que desemboquem na intervenção externa, isto é, de instituições exteriores à universidade? Em todo esse imbróglio, o que está em jogo é a gestão responsável e a defesa da autonomia universitária. Razão pela qual, é premente a elaboração e execução de uma intervenção da própria universidade que apele, unicamente, a sua racionalidade do diálogo e da educação.

Uma intervenção institucional legítima

Para uma efetiva ação política e pedagógica sobre a questão do consumo de drogas nos setores da UFRN, não basta apontar as feridas ou nomear culpados. Muito menos apelar ao poder da ordem legalista e seus aparelhos de repressão social (ação da polícia na universidade, por exemplo). É preciso pensar o enfrentamento do problema no âmbito interno da própria instituição universitária. E aqui, melhor do qualquer outra instituição, a universidade tem a seu serviço, capital humano e científico de excelência (médicos, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, antropólogos, etc.), capaz de intervir de modo eficaz e legítimo no tratamento do problema com o consumo de drogas na universidade. E o mais importante, dispositivos institucionais que podem atuar com a preocupação de não gerar traumas ou violência na vida dos consumidores de drogas. A universidade pode ser um laboratório mesmo de gestação de políticas publicas inovadoras de intervenção sobre o consumo de drogas na sociedade.

Mas para que isso aconteça mesmo, a universidade precisa marcar posição publica sobre a questão. Agir com indiferença ou se calar diante do problema das drogas nos campus universitário não se coaduna com o seu papel civilizatório. A universidade deve intervir sim, mas não recorrer a forças externas, pois isso seria admitir publicamente perante a sociedade a sua incapacidade institucional de lidar com problemas internos ao seu campo de ação. Além do mais, a interferência de agentes exteriores significaria submeter a racionalidade comunicativa e pedagógica que caracteriza a Universidade por uma outra forma de racionalidade, mais imperativa, diretiva e autoritária.

O consumo de psicoativos como uma prática da “dietética” ou como um antidoto para as tensões diárias

 Urge, também, questionar os estudantes libertários e os consumidores de drogas. Critica-los em relação aos abusos de suas práticas de uso do espaço público e em suas posturas dirigidas aqueles que não-compartilham de suas preferências e hábitos. É imprescindível perguntar a propósito do que esperam da instituição. Querem que ela faça vista grossa e os acobertem confiando unicamente em seu bom uso da liberdade e do respeito à convivência? O que fazem para que o discurso da diversidade e da liberdade não seja um via de mão única, que serve a uns mas não a outros? O que propõem de realmente prático para “solucionar” a questão dentro do campus? Um consumo consciente? Espaços específicos para consumo?

Mais uma vez, a partir do patrimônio de saberes e conhecimentos oferecido pela própria universidade, podemos encontrar um caminho. É possível pensar outras atitudes de relação com o uso de substancias psicoativas, menos dramáticas e menos hipócritas ou cínicas. Apoiadas talvez numa ação moral mais ampla de exercícios e regimes de práticas de si; ou ainda como formas de relaxamento contra as tensões do dia a dia.

Instituir uma dietética que problematize o prazer corporal derivado do consumo de substâncias químicas ou orgânicas que alteram a percepção pode ser parte integrante dos passos para a formação de um sujeito moral. E o mais importante, para o desenvolvimento de relações consigo que objetivam “liberar” ou “libertar” o indivíduo de se deixar dominado pelos seus impulsos primevos de sorte a exercitar uma verdadeira e autêntica soberania sobre si e suas paixões. Como se referia Michel Foucault com respeito às antigas éticas gregas, um governo de si fundado no auto-governo dos prazeres do corpo.

Mas para isso, também é necessário não se deixar iludir com o canto de sereia de associar mecanicamente o consumo intempestivo e intemperado de narcóticos ou psicoativos a um ato politicamente libertário, tal como defendem muitos dos estudantes anti-proibicionistas e cannabistas da UFRN.  Não se pode chamar de “liberdade” a servidão do indivíduo à busca desregrada do prazer hedonista. Encantar o uso das drogas como prática vanguardista intelectual ou artística, isto é, tomá-lo em si mesmo, sem mediação ética, reflexiva, como força expressiva do que quer que seja é dourar a pílula.

O governo de si não está automaticamente dado, mas é uma conquista diária do trabalho de si sobre si. O mesmo se pode dizer do uso temperado dos psicoativos. Esse pressupõe um continuo regime de práticas de relação com o corpo e com o outro. Uma arte de viver que transforma a ordem corporal numa ordem moral de condução de si para que os prazeres e delírios do corpo – microfascismos do desejo – não recaem sobre nossa própria liberdade e à dos outros.

Não obstante, pode-se ainda indagar a respeito de outras funções sociais para com o consumo de substâncias psicoativas (“drogas”).  Por exemplo, como um “relaxamento de si”e uma forma de lazer e fruição individual ou compartilhada. No entanto, também estas, exigem um ethos ou estética de cuidado de si, se não do bom uso da liberdade e do desejo, mas, pelo menos, do bom governo do bem-estar do corpo.

As drogas podem ser não somente modos de subjetivação de si, mas também formas de relaxamento e contrabalanças às tensões e cargas de estresse de uma vida profissional e urbana diária. Uma maneira de “se desligar”, “se distrair”, “se liberar” das seriedades das duplas vidas profissionais e familiares, da fadiga escolar, da preocupação ou contrariedade. Mas assim como no uso moral e estético da droga, o uso relaxante das drogas não pode ser desregrado e cheio de excessos, haja o risco de adoecimento do corpo e do espírito. Afinal, o adoecimento e sofrimento emocional pelo uso compulsivo de substâncias psicoativas não é uma “invenção midiática”, mas um fato objetivo empiricamente irrefutável. A menos, é claro, que chutemos todo e qualquer argumento fundado no logos. Mas aí, não haverá diferença entre o nobre anarco-libertario esteta e o crente medíocre. Em suma, fazer uso das drogas para relaxar ou experimentar não é uma performance trans, pós ou outros salamaquês discursivos. Mas uma práxis reflexiva de exercício do logos na temperança dos prazeres do corpo.

Portanto, a Carta Potiguar, se posiciona mais uma vez, em defesa da Universidade, não de seu poder e burocracia, mas de sua potência como instituição de educação e pesquisa em cujo repertório intelectual, ético e humano pode encontrar as soluções para os seus próprios dilemas e problemas. Repertório e legado que não está nas mãos ou sob o controle dos administradores ou mesmo dos professores. Cabe à nós, estudantes, reivindicá-lo e usá-lo em favor da ideia de universidade que nos anima e que aspiramos, ou seja, a universidade como espaço de conhecimento, liberdades e vivências.