Por Alyson Freire e Carlos Freitas
(Publicado originalmente em 06/10/2011)
Como todos nós sabemos, a universidade é o lugar da produção do conhecimento; mas, sobretudo, o espaço de problematização sobre os dilemas culturais e sociais de nossa civilização. Nesse espaço, relativamente desprendido das pré-noções do senso comum, indivíduos e coletividades podem submeter ao debate reflexivo e equilibrado, temas socialmente delicados e permeados de pré-julgamentos, suspendendo estigmas e preconceitos que se reproduzem muito mais por força do hábito e dos discursos simplificadores (mídia, igrejas) do que por entendimento racional dos fatos.
Em princípio, é no tratamento racional e no diálogo plural de ideias que a universidade cumpre sua função civilizatória. Espera-se de homens e mulheres que habitam as salas e corredores daquela instituição, pelo menos em tese, uma disposição para o debate e o cultivo regrado da “boa” convivência com a diversidade e a alteridade. Este é um dos sentidos verdadeiramente mais preciosos da estatura moral de nossa universidade e uma de suas mais caras contribuições para os que nela adentram. Por isso mesmo, preocupa quando vemos jovens acadêmicos mobilizarem discursos na contramão de tais princípios civilizatórios.
À exemplo disso, nessa semana, logo após uma reportagem, um tanto sensacionalista, diga-se, a respeito do consumo de psicoativos ilícitos por usuários que circulam “livremente” pelos corredores da universidade, indiferentes a qualquer forma de censura ou de repressão institucional, teve início um debate nas redes sociais ligadas à UFRN sobre o consumo de drogas no interior do campus. Nesse debate, por um lado, jovens estudantes e funcionários que não compartilham com tais práticas de consumo externam um mal-estar, desconforto e revolta com a situação. Por outro, estudantes, mais libertários, ressaltam que a universidade também é um espaço de vivências, de experimentações novas e de ousadia.
No entanto, há também, nessa ocasião de discussão virtual, muitas pessoas que estão aproveitando o debate para destilar preconceitos e pré-julgamentos contra estudantes e usuários, mas também contra cursos da área de humanidades. Há quem defenda, inclusive, a entrada e a intervenção repressiva da polícia militar e civil, a fim de coibir, pela força, o uso de drogas na instituição.
O consumo de substâncias psicoativas não é um fenômeno simples que pode se compreender, em todas as suas dimensões e consequências, por meio de fórmulas prontas e discursos redutores oriundos de universos sociais exteriores à esfera acadêmica e científica, do tipo “o usuário financia o tráfico” – em que pesquisa se encontra tal argumento? Que base empírica e metodologia fundamentam tal conclusão? Portanto, para honrar o título de universitários, façamos, ao menos, o uso de sua produção e pesquisa acerca do tema, de seus especialistas e seu saber.
É bem verdade que, a questão da legitimidade do consumo de drogas não é ponto pacífico dentro nem muito menos fora da universidade. E por isso, merece atenção e visibilidade social na esfera pública. Mas isso não é o mesmo que reconhecer a necessidade urgente de intervenção policial e repressiva no campus universitário. Às vezes em que a polícia investiu incursões no interior do campus, os resultados não foram nem de longe produtivos em matéria de reestabelecimento do bem-estar individual e coletivo.
Como dissemos, a universidade é o espaço de debate das pluralidades e do bem-estar coletivo. E este coletivo é forte suficiente pra gerir o funcionamento dos corredores, por exemplo, determinando o que seria melhor ao bem-estar de todos sem interferências outras que passem por cima da racionalidade própria à Universidade. Por isso, o enfraquecimento deste coletivo constatado pela presença da polícia – convocada para atender incômodos de grupos específicos, criando ou acentuando hostilidades entre os grupos de usuários e os não-usuários – e rechaçando o debate pela força da letra fria da lei, não é nada saudável. Mais ainda, contraria o papel de educadora moral e cultural da sociedade que corresponde ao ideal e missão da universidade.
O problema da existência de usuários e mesmo “viciados” em drogas pesadas na universidade é um problema de fato e que merece o reconhecimento e a atuação institucional. Nesse sentido, é preciso também questionar os ditos estudantes libertários e os usuários, pois, o que esperam da instituição? Que ela faça vista grossa e os acobertem confiando unicamente em seu bom uso da liberdade e do respeito à convivência? Acaso estes usuários tem maturidade intelectual e ética suficientes para cumprir estes princípios, e assim evitar que o discurso do respeito à diversidade e à convivência plural seja um discurso de mão-única, que serve apenas a si mas não aos seus críticos? O que propõem de realmente prático para “solucionar” a questão dentro do campus? Um consumo consciente? Espaços específicos para consumo?
A instituição espera que, ao menos, os usuários e os estudantes libertários politizem o uso, que organizem debates, marchas, pesquisas e levem os resultados à comunidade em geral. Iniciativa, alías, que vem sendo cumprida por alguns. A instituição espera também que não confundam a real finalidade da Universidade, a produção do conhecimento e o aprendizado, fazendo com que acabem por sobrepujar sua real missão e função por um prazer, por uma atividade de relaxamento que não diz respeito à razão de ser da Universidade.
O debate e as divergências devem ocorrer. Mas que ocorra sem a contaminação imprudente das representações e das paixões subjetivas dos discursos simplificadores e policialescos. A referência primeira deve ser sempre o cultivo temperado do bom senso educador. Do educador de si e do educador do outro. Como integrantes da Universidade, é de nossa vocação sempre optar pela palavra em vez da força ou da violência. Façamos valer essa vocação.