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Uma boa sociedade requer tanto o Estado como o mercado

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Entrevista com o economista Amartya Sen

A entrevista é de Fernanda Mena e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 18-04-2012.

Imagem: Raymond June

O economista indiano, laureado com o Nobel em 1998, construiu sua teoria sob a premissa de que o desenvolvimento tem como base o estado democrático de direito e o bem-estar social.

Ao aliar um modelo de economia capitalista liberal ao regime totalitário do partido comunista, a China, economia que mais cresce no mundo, propõe naturalmente um desafia à teoria de Sen.

Idealizador do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – referência empregada pelas Nações Unidas para classificar países a partir de dados como PIB per capita e grau de escolaridade – e renomado por seus estudos sobre a fome, Sen avaliou que as medidas de austeridade adotadas atualmente na Europa devem aprofundar a crise e que o movimento “Occupy” pode trazer à tona questões cruciais para o desenvolvimento hoje.

Eis a entrevista.

Qual será o impacto das medidas de austeridade adotadas na Europa para combater a crise?

As medidas intransigentes adotadas na Europa são baseadas em um raciocínio muito confuso. Você diz que elas foram adotadas “para combater a crise”. Na realidade, porém, elas estão agravando e muito o problema da recessão, ao acabar com os incentivos para a expansão da economia da Europa (por meio do aumento da demanda), justamente quando é mais necessária.

E quais seriam as alternativas às medidas severas exigidas pelo mercado?

Primeiramente, seria preciso aplicar uma disciplina seletiva, visando eliminar os erros de conduta fiscal e a tentação de voltar a cometê-los no futuro (sem cortar coisas como salário-desemprego ou serviços vitais).
Em segundo lugar, seria necessária a escolha do momento adequado para a adoção destas medidas -sem reduzir a demanda do mercado por meio do corte selvagem dos gastos públicos, exatamente agora, quando a maioria dos países envolvidos já tem muitos desempregados.

Não há incompatibilidade entre disciplina fiscal seletiva, bem escolhida e adotada no momento certo, e uma economia de mercado que funciona bem, suplementada por serviços sociais e um “Estado de bem-estar social”.

Tudo vai depender de uma escolha sensata do “timing” e da cobertura dos cortes a serem feitos.
O que estão fazendo é impor um programa geral de austeridade em todos os setores, no pior momento.

Os Estados estão encolhendo? Como isso compromete o desenvolvimento?

Não creio que o papel do Estado esteja encolhendo no mundo. A crise global de 2008 foi iniciada em grande medida pelo fato de o Estado ter deixado de exercer seu papel supervisor. À medida que a recessão se aprofundou, o fato de o Estado, em muitos países, ter deixado de prestar apoio aos desempregados de longo prazo e deixado de fornecer outras medidas de segurança social agravou em muito o sofrimento provocado pela crise -para as pessoas mais pobres e mais afetadas pela recessão. A economia e a sociedade precisam de atividades do Estado, além do funcionamento da economia de mercado. A experiência recente da recessão global trouxe muitas lições sobre o que não fazer.

Que lição poderia ter evitado a crise de 2008?

A compreensão de que a economia de mercado pode, sim, dar seriamente errado e que o Estado deve ter o poder e a responsabilidade de impedir que isso aconteça. As coisas não teriam dado tão errado se os riscos excessivos assumidos tivessem sido conservados sob a disciplina da divulgação obrigatória de informações e da supervisão geral. Os executivos financeiros recebiam bônus enormes enquanto as firmas assumiam riscos não justificados, sujeitando a economia e o povo a incertezas enormes.

Qual é o papel dos Estados, hoje, no desenvolvimento?

A questão fundamental é que uma boa sociedade necessita tanto de instituições baseadas no Estado quanto de instituições de mercado. O Estado precisa fazer coisas que os mercados não são capazes de fazer com eficiência ou equidade, como nas áreas de saúde, educação, segurança e apoio aos desempregados e aos pobres. O Estado não pode deixar de exercer a liderança nesses setores e na função de impedir a economia de mercado de correr riscos excessivos na busca por lucros rápidos. Ele precisa assegurar que o sistema de pagamento das firmas particulares (incluindo o pagamento de bônus enormes aos altos executivos) não cause desigualdades inaceitáveis e não coloque em risco a viabilidade do sistema econômico.

Qual a sua opinião sobre os movimentos “Occupy”, que, apesar de terem demandas confusas, reivindicam transparência no setor financeiro?

Vejo os movimentos “Occupy” como uma das coisas mais interessantes e animadoras dos últimos anos.
Suas queixas não são bem formuladas, evidentemente. Mas essa falta de precisão e de articulação não torna os movimentos pouco importantes. Eu os vejo como algo que está registrando a insatisfação com as disparidades e injustiças no mundo. O impacto que terão sobre o modo como o mundo funciona vai depender de como são levadas adiante essas explosões de protesto. Com um engajamento contínuo e liderança inteligente, poderão trazer para a discussão pública uma série de questões cruciais.

Entrevista retirada do sítio do Instituto Humanitas Unisinos.