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O Supremo e a Constituição

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Por Renato Janine Ribeiro
(Prof do Dep. de Filosofia – USP)
Imagem: Flickr

Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ayres de Brito recomendou ler a Constituição todos os dias. Isso vale para quem opera com o Direito e, penso eu, para todos os cidadãos. Muito bem. Mas será bom que os tribunais superiores e o próprio Supremo também sigam a sugestão do novo chefe do Poder Judiciário. Porque decisões importantes do Tribunal Superior Eleitoral, endossadas ou toleradas pelo STF, vão contra o maior princípio de nossa Constituição: a democracia.

Há várias teses sobre a democracia. Mas uma delas é fundamental e inconteste. Democracia é, literalmente, poder do povo. Só há democracia se o povo escolher os governantes.

É ele, diretamente ou por seus representantes eleitos, quem decide leis e impostos. Ninguém governa democraticamente um país, Estado ou município se não tiver sido eleito. Nas Américas, que adotam o regime presidencialista, os chefes do Executivo são votados diretamente pelo povo. Só em casos excepcionais, como se vagar o cargo perto do fim do mandato, cabe uma eleição indireta para completá-lo. E nessa eleição votam representantes do povo, isto é, pessoas que este elegeu.No parlamentarismo, o povo não elege diretamente o chefe de governo, mas vota em deputados, que elegerão o primeiro-ministro. Também aí, só pode governar quem o povo, em última análise, escolheu. Na democracia, todo poder emana do povo e é exercido em seu nome, como disseram nossas Constituições republicanas, ou diretamente por ele, como acrescentou a Constituição de 1988.

A democracia não admite governante não eleito

O que não se admite, num regime democrático, é que se dê posse ao candidato derrotado pelo povo. Esse é o fim da democracia.

Mas, nos últimos anos, o TSE cassou mandatos de governantes eleitos e mandou dar posse ao candidato derrotado. Em 2009, destituiu os governadores do Maranhão, Jackson Lago (PDT), e da Paraíba, Cassio Cunha Lima (PSDB), dando seus cargos a Roseana Sarney e José Maranhão. O mesmo tinha acontecido em vários municípios – como Mauá (SP), que, depois da eleição de 2004, foi governado por quatro anos pelo candidato perdedor.

Debato aqui só os eleitos pelo voto majoritário – presidente, governadores, prefeitos e senadores. No voto proporcional, a cassação prejudica o candidato, mas sua cadeira permanece com seu partido (ou coligação). O voto popular é preservado. No majoritário, a cassação tem o efeito oposto. É um tapetão. Descarta o voto popular.

Não sou contra cassação de governantes pela via judicial. Se cometeram crimes graves, percam o mandato. Haverá que medir a gravidade do delito. A cassação deveria valer somente para delitos sérios.

Hoje ela está prevista para tantos casos que sua aplicação ou não é aleatória; não há meio termo. Mas essa é uma questão de dosagem jurídica do erro e da pena. O que discuto aqui é mais fundamental: é teórico, é constitucional, é ético. O que ofende a essência da democracia é dar posse ao candidato que o povo recusou. Nenhum tribunal tem, no regime democrático, o direito de inverter a decisão popular. Ele organiza o processo eleitoral. Pode mandar recontar os votos. Pode até anular uma eleição e convocar uma nova. Mas não pode virar pelo avesso a vontade do povo. Nem um tribunal, nem ninguém.

Ainda em 2009, o governador de Tocantins também foi cassado. Mas, alegando razões técnicas, o TSE determinou nova eleição – indireta, pois se acercava o fim do mandato e seria difícil uma consulta popular. Foi uma solução correta. O novo governador foi eleito por deputados que o povo tinha escolhido. Teve legitimidade. Talvez o TSE se arrependesse das decisões anteriores. E jamais se atreveria a dar posse a um candidato derrotado em São Paulo, Minas Gerais ou Rio de Janeiro. Mas o grave, mesmo, é que a Corte não percebeu a gravidade do que fizera. Não soube articular teórica e juridicamente o que é democracia. Considero preocupante que nosso tribunal especializado em eleições, bem como o tribunal guardião da Constituição, ignorem em questão tão crucial o que é o significado essencial de democracia.

Os defensores dessas sentenças poderiam alegar que o TSE cumpre a lei. Mas leis não podem violar a Constituição. Aliás, com razão, o TSE e o STF debateram – até longamente – a Lei da Ficha Limpa, para que ela respeitasse princípios constitucionais importantes.

Talvez nossos juízes entendam melhor os preceitos constitucionais que respeitam os direitos individuais ou pessoais, do que os que dizem respeito aos cidadãos e à coletividade. Sua formação os orienta mais nessa direção. Por isso insisto, neste artigo, no valor da democracia e da república. Não são palavras genéricas. “Democracia” quer dizer que o poder é do povo. “República” quer dizer que a coisa pública não pode ser apropriada por interesses particulares. Basta a Constituição dizer que o Brasil é uma república, para que ações cometidas em flagrante prejuízo do bem comum – nepotismo, concessão de bens públicos em troca de corrupção ou de vantagens pessoais, uso do mandato em benefício próprio – sejam ilícitas. Igualmente, basta a Constituição afirmar o caráter democrático de nossa pólis para que seja errado dar o poder a quem perdeu as eleições.

Aliás, a solução para esse problema é bastante simples. Espanta que não tenha sido tomada por nossos tribunais superiores. Casse-se o mandato de quem cometeu o crime eleitoral, com as penas que merecer, inclusive a inelegibilidade. Convoque-se nova eleição, para que o povo escolha novo governante. Dará algum trabalho. Custará dinheiro. Mas custará menos do que ter, como governante, alguém que o eleitorado rejeitou.

Publicado no Valor Econômico 30/04/2012