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Amizades e inimizades e os Anos 10

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Imagem: Buffy.tws

O conceito em torno da palavra amigo mudou. Contribuíram as mídias sociais, a maior escolaridade e a mobilidade geográfica. Antigamente um amigo era aquele que, independente da esfera social onde você o tenha conhecido, mantinha contigo um contato presencial constante, ou pelo menos uma conversa todos os dias sobre os assuntos mais variados. Muitos dos meus amigos são pessoas que quase todos os dias visitam, ligam, conversam ou trocam ideias. Hoje em dia, muita gente nem está na presença do outro para ser considerado amigo. A palavra não mudou, mas seus significados mudaram naturalmente decorridas as mudanças sociais em torno dela.

Existia na minha geração o conhecer o outro a fundo. O convívio constante com os amigos nos obrigava a saber muito além do que este dizia ser: nós víamos o que ele realmente era. Não adiantava alardear que era pegador se os amigos soubessem que você era um romântico incorrigível. Sabíamos algo dos outros que transcendia sua casca e sua auto-alegação. Hoje em dia, as pessoas contentam-se com o que se coloca nas redes sociais. Se numa rede social eu disser que sou católico, que trabalho administrando empresas e que adoro ouvir Punk Rock, isso será suficiente para me julgar e estabelecer relações diversas comigo.

Ainda lembro de quando o correio era mais barato e mais usado, e as pessoas se mudavam menos. Aprendi desde cedo a escrever textos grandes porque, como o telefone era caro, a carta era a única maneira de manter um contato constante com as pessoas que eu estimava. Com o tempo passei a ligar mais para meus amigos, meus parentes e meus colegas. A voz substituiu a escrita. Com as redes sociais, a amizade voltou a depender do contato constante, mas ele agora era diferente: as pessoas não conversam mais, contentam-se com o simples nome de seu amigo na sua lista de contatos.

Contentam-se com tão pouco porque o item “apreciação” mudou. Alguns de meus contatos no Facebook, no Orkut e no Skype, por exemplo, são pessoas com quem mal converso, e que inclusive têm coisas contra mim. Nenhum deles aprecia um único dado meu, e a recíproca é verdadeira. O problema é que são muitos.

Na minha adolescência, a amizade implicava também em apreciar o outro em suas múltiplas formas. Hoje, por alguma razão masoquista que me foge à mente, a amizade não permite e não abre espaço para que você seja apreciado, e para que você aprecie o outro, em suas qualidades e em seus defeitos.

Os gostos em comum eram também um requisito para a amizade no passado. Mesmo que ambos começassem gostando de coisas diferentes, a simples amizade ia afinando um ao outro aos poucos. A amizade implicava em ter gostos parecidos (não iguais, apenas parecidos). Bastava gostar de duas ou três coisas em comum e pronto, tinha-se a “cola” para se manter a amizade, pois isso implicaria inclusive em atividades em comum. Hoje em dia, isso é algo morto. Duas pessoas dizem-se amigas, mas nenhuma delas consegue gostar das mesmas coisas. Isso era mais patente na época do Orkut: de quase mil contatos que tive, apenas uns quatro ou cinco tinham comunidades em comum comigo, e todo o restante não tinha nada em comum. O problema de hoje é que as pessoas preferem manter uma amizade em nome da “pluralidade e diversidade de ideias” ao ponto de não conseguirem ser coerentes consigo mesmas.

Na minha época o afeto era importante. O que hoje temos como sentimento com conotação sexual era, na minha infância e adolescência, um desejo de estar sempre junto. Hoje em dia, um amigo que está sempre por perto é considerado um chato. As pessoas têm medo de quem se mostra mais amável com elas, de quem está mais à disposição, e isso quando não se aproveitam desse sentimento fazendo o outro de otário. Além do mais, valoriza-se muito a individualidade, e a tal ponto que se chega a considerar o outro como uma peça redundante pronta para atrapalhar.

Uma única coisa se manteve das antigas amizades: o interesse. Mesmo esse é diferente. Antigamente, seu interesse servia para estreitar os laços, para estar atento e ajudar em caso de necessidade, para manter ambos em segurança e dar apoio. Hoje em dia, o interesse se reduz em acompanhar de forma impessoal a vida alheia e desenvolver um sentimento de posse. A amizade contemporânea é marcada por um profundo sentimento de “se X é meu amigo, não o divido nem mesmo para as suas opiniões”, tendo, como resultado constante um “ele não me merece, cortarei a amizade”.

Então, recapitulando: as amizades na época dos meus pais consistia na presença do outro quase constante, no conversar, no manter o contato, no apreciar o outro, no compartilhar gostos e em ter um profundo sentimento de prazer em ter o outro como amigo, além de um interesse voltado em ajudar. As amizades de hoje consistem no simples manter contato e ter interesse em acompanhar a vida do outro. A palavra é a mesma, mas seu campo semântico é diferente. Isso que consideramos amizade hoje em dia, na época de meus pais seria considerado “contato”, e não qualquer contato. Eram contatos profissionais, religiosos ou comunitários. Isso que meus pais chamariam de amizade hoje é visto como amigo íntimoamigo de infância ou namorado(a).

Assim, o que consideraríamos inimizade na época de meus pais seria justo o oposto da amizade. Ser inimigo naquela época consistia em não querer conversar e muito menos estar na presença do outro, e cortar qualquer contato com o outro, em não apreciar o outro em nada, em não compartilhar com o outro seus gostos, além da ausência de qualquer sentimento positivo em relação ao outro. A única coisa que a inimizade tinha em relação com a amizade era o fato de que um inimigo conhecia profundamente a vida do outro e o interesse em acompanhar sua vida para “prevenir-se” de qualquer eventualidade.

Hoje em dia, é considerado um inimigo simplesmente uma pessoa que está na sua presença, mantém contato contigo, se interessa por você, tem os mesmos gostos que você, mas apenas você não gosta da pessoa, não a aprecia e, o que é pior, não a conhece. Muitos que se dizem inimigos nas redes sociais são pessoas que podem ter mais em comum com elas do que pensam. Algumas pessoas alardeiam-se inimigas sem nem mesmo se conhecerem, sem nunca terem tomado cerveja juntas, sem nunca terem assistido um filme juntas, e sem nem mesmo nunca terem se visto pessoalmente em toda a sua vida.

O que na época do meu pai era tido por inimigo, hoje as pessoas tomam por “estúpidas que odeiam sem motivos” (mesmo os motivos sendo públicos e válidos, porém recuados no tempo). O que hoje as pessoas chamam de inimizade, na época de meus pais eram conhecido mais como atrito. Isso porque, para ser inimigo de alguém, antigamente, era necessário conhecê-lo muito bem para entender o porquê da inimizade. Hoje em dia, o outro é seu inimigo simplesmente porque não concorda contigo, ou porque fez uma brincadeira que você não gostou, ou porque simplesmente é diferente de você. Uma pessoa tinha um contato no Facebook, algo que ela disse você não gostou, e logo você corta a amizade com ele e o considera inimigo. Hoje, inimizade implica em simplesmente não ter o outro como contato. Devo, então, ter quase sete bilhões de inimigos, nesse raciocínio.