“Todo riso está próximo do horror que o prepara”, disse certa vez Theodor Adorno, destacado membro da chamada escola de Frankfurt, ao homenagear o 75° aniversário do seu amigo Charles Chaplin. Jerry Lewis, legítimo decendente da comédia “slapstick” de Chaplin e Buster Keaton, tornou explícita essa proximidade com o seu projeto de 1972 que hoje tornou-se uma lenda no meio de cinéfilos e pesquisadores: o filme “The Day The Clown Cried” (O Dia em que o Palhaço Chorou), um projeto não concluído, jamais exibido e apenas assistido por um grupo restrito de críticos e produtores hollywoodianos cuja opinião foi unânime na época – “isso é simplesmente errado!”.
Um filme cuja sinopse poderia ser assim resumida: um decadente palhaço de circo — interpretado pelo próprio Jerry Lewis — no começo da Segunda Guerra Mundial, é despedido e preso por zombar de Hitler. Acaba parando em um campo de concentração para presos políticos em Auschwitz. E sendo um palhaço com algum sucesso entre as crianças, ele arranja um trabalho por lá: levar as crianças quietas e comportadas enquanto se divertem com o palhaço, sem suspeitar que estão, na verdade, indo para a câmara de gás.
O roteiro de 164 páginas sobre a estória de um palhaço que leva criança para fornos em Auschwitz virou objeto de lenda, lido e partilhado através de uma rede de cinéfilos pelo mundo. Desde o filme de 1968 de Mel Brooks “Primavera para Hitler”, ninguém do mundo do cinema poderia imaginar que seria possível outra comédia envolvendo a Alemanha nazista.
A única cópia existente do filme encontra-se com o próprio Jerry Lewis, impedido de lança-lo por problemas judiciais com os autores do livro em que foi baseado o roteiro e dívidas trabalhistas (Jerry Lewis quebrou financeiramente durante as filmagens). Imagens do making-off do “The Day The Clown Cried” encontram-se no Youtube (clique aqui para ver o vídeo).
Desde o filme “O Professor Aloprado” (The Nutty Professor, 1963) o humor de Jerry Lewis passa a ficar cada vez mais amargo e ácido. Das desventuras do projeto “The Day The Clown Cried” Lewis aprofundaria cada vez mais o tom amargo do seu humor até culminar no filme de Scorsese “O Rei da Comédia” (The King of Comedy, 1983) onde o comediante ri de si mesmo ao expor sua famosa arrogância e egolatria na estória de um fã (Robert De Niro) que inveja o seu estrelato e o sequestra.
História do Riso
A pretensão de Jerry Lewis em representar cinematicamente a situação de crianças à beira da morte rindo das gags de um palhaço revela a conexão secreta que sempre existiu na História entre o riso e o horror – uma proximidade ambígua, pois pode significar tanto a salvação como a legitimação da crueldade.
Georges Minois no livro “A História do Riso e do Escárnio” descreve as três fases do riso na História: mágica, agrícola e romana-cristã. Das origens instintivas associadas à agressividade (o esgar dos dentes diante do inimigo) o riso evolui para o ritual mágico de anulação da morte, para negá-la e invertê-la no seu contrário, pois só os mortos não conseguem rir (em muitas culturas, as cócegas são um ótimo instrumento para verificar se uma pessoa está viva ou morta).
Com o Cristianismo o riso é associado simultaneamente ao demoníaco e ao corporal: a irrupção de uma gargalhada proveniente das vísceras como a própria manifestação da voz do demônio. Cristo jamais sorri.
Para o italiano Massimo Canevacci, o cinema recupera em um novo e insuspeito nível a originária função social das origens mágicas do riso através da comédia “slapstick” da geração de Chaplin e Buster Keaton. (veja CANEVACCI, Massimo. Atropologia do Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984)
O riso como inversão mágica diante da “morte”: o “the last minute rescue” (no último minuto o herói salva a moçinha amarrada no trilho diante da locomotiva), a ridicularização do mais forte (o policial desajeitado que não consegue prender o herói, o sorvete que cai no decote da mulher rica etc.).
Buster Keaton (o palhaço que nunca ria), mas que fazia os espectadores rirem com sua face de pedra. Fazia rir fingindo-se de cadáver.
O riso pós-guerra
O pós-guerra e a consolidação de Hollywood como instrumento ideológico produz uma guinada na forma-riso, agora ainda mais estreitamente condicionada pelas leis de produção e controle social: o riso direciona-se agora para o socialmente mais fraco, riso na sua forma cruel, absorvida pelo horror e sem poder de subvertê-lo. “se ri do fato de que não há mais nada do quer rir”, como afirmam a certa altura Adorno e Horkheimer na “Dialética do Esclarecimento”.
As desventuras neuróticas do Pato Donald, Tom e Jerry, Jerry Lewis até Woody Allen estabelecem a conexão automática entre o riso e a crueldade contra o socialmente mais fraco. Se no “slapstick” não rimos do herói (porque ele é épico), mas das situações absurdas e “non sense” que a realidade cria, agora caçoamos de verdadeiros anti-heróis, trágicos pelo fato de o princípio de realidade quebrar todas as resistências individuais.
“Se os desenhos animados têm outro efeito além do de habituar os sentidos a um novo ritmo, esse é o de martelar em todos os cérebros a antiga verdade de que o maltrato contínuo, a quebra de toda resistência individual, é a condição de vida nesta sociedade. Pato Donald nos dessenhos animados, tal como os indivíduos na realidade, recebem pontapés para que os espectadores se habituem aos que eles mesmos recebem” (ADORNO, T.W. e HORKHEIMER, M. A Dialética do Esclarecimento, R. de Janeiro: Zahar, 1985, p. 151).
Embora o humor físico e de gags visuais de Jerry Lewis o ligasse à tradição da comédia “slapstick”, o contexto já era outro: o riso realista e amargo produzido pela vasta galeria de perdedores de bom coração, mas incapazes de se contrapor à razão instrumental do capitalismo tardio. Do riso épico, Jerry Lewis mergulhou no riso trágico e cruel.
Se ainda nos tempos da dupla que formava com Dean Martin em shows em cassinos e hotéis nos tempos pré-estrelato, Jerry Lewis ainda mantinha o riso anárquico que subvertia o domínio do bem arrumadinho e galã companheiro de dupla, na sua carreira solo teve que se converter na marra aos desígnios dos novos tempos que impunham a condição do riso contra o mais fraco como forma de rir de si mesmo (como na “dialética do Pato Donald” tal como citada acima).
É sintomático que o auge da carreira de Jerry Lewis esteja justamente em uma adaptação do conto de horror Dr. Jack e Mr. Hyde, o filme “O Professor Aloprado”: rimos de um protagonista que não consegue adaptar-se ao princípio de realidade de uma sociedade de consumo cruel e excludente, revelada nos bullings reais ou virtuais da atualidade, aparentemente antecipados pelo próprio filme. No fundo, rimos de nós mesmos, dos nossos próprios dramas de adaptação.
Também parece ser sintomático os problemas litigiosos e críticas dos produtores hollywoodianos diante do projeto “The Day The Clown Cried”: no momento em que Jerry Lewis mais quis aproximar o riso das suas origens para tentar subverter epicamente o horror na figura de um “clown” decadente, ninguém entendeu nada. O mal estar ou incorreção do tema está menos na aproximação entre campos de concentração e humor (afinal Roberto Begnini faria o mesmo em 1997 com o filme “A Vida é Bela”) do que na anárquica inversão de poder que um clown decadente consegui fazer diante do comando de um campo de concentração.
Algo parecido com os heróis loucamente anárquicos dos escritores Bernard Fein e Albert Ruddy na série de TV dos anos 1960 chamada “Guerra, Sombra e Água Fresca” (Hogan’s Heroes, 1965-71).
Ficha Técnica
- Título: The Day The Clown Cried
- Diretor: Jerry Lewis
- Roteiro: Joan O’Brien e Charles Denton (livro) e Jerry Lewis (adaptação)
- Elenco: Jerry Lewis, Peter Ahlm, Lars Amble, Harriet Andersson
- Locações: Europa Studios, Estocolmo e Suécia
- Ano: 1972
- País: EUA