Por Jules Michelet Pereira Queiroz e Silva
(Advogado)
No presente espaço gentilmente cedido pela Carta Potiguar, pretendemos desenvolver um projeto singelo, mas de grande utilidade. Pretendemos vasculhar as entranhas do Direito Eleitoral contemporâneo, traduzi-lo e discuti-lo com nossos leitores.
É que a mídia em geral não traz maiores explicações sobre o funcionamento do sistema eleitoral brasileiro. Na maioria dos casos, apenas traz noções simples do Direito Eleitoral para ilustrar ou explicar casos concretos.
Tais explicações, muitas vezes, se mostram parciais ou, no mínimo, imprecisas. O objetivo da presente coluna não é explicar, mas decodificar e debater o sistema eleitoral com os leitores.
Noutros termos, não buscaremos dar respostas corretas, mas sim buscar o modo correto de se formular as perguntas.
Câmara Cascudo, em seu livro “Rede de Dormir – uma pesquisa etnográfica”[1], afirma que o hábito de dormir na rede foi um dos primeiros costumes indígenas absorvidos pelo colonizador português.
Não é de se estranhar, portanto, que a cultura jurídica brasileira aprecie tanto um balanço, um contínuo vai-e-vem.
Não é incomum que um advogado, cidadão ou candidato se depare com decisões da Justiça Eleitoral que vão de encontro à jurisprudência pacífica dos tribunais, inclusive em casos idênticos julgados em eleições passadas.
Um exemplo dessa instabilidade, em decisão do Tribunal Superior Eleitoral, é a necessidade da aprovação das contas de campanha para a quitação eleitoral. A decisão do TSE de março de 2012 conflita frontalmente com a jurisprudência firmada nas Eleições de 2010, especialmente se considerada a Lei n. 12.034, de 29 de setembro de 2009[2].
Mas por que isso acontece?
Podemos identificar três razões.
A primeira decorre da forma de composição temporária da Justiça Eleitoral.Esta não dispõe de quadro próprio de magistrados, de modo que a jurisdição eleitoral é exercida por juízes estaduais e federais.
A Justiça Eleitoral de primeira instância é composta por juízes de direito em exercício nas comarcas sede de Zonas Eleitorais. Os Tribunais Regionais são compostos por dois desembargadores do Tribunal de Justiça, dois juízes de direito, um juiz ou desembargador federal e dois advogados. O TSE é composto por três Ministros do Supremo Tribunal Federal, dois do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados.
Os mandatos desses juízes são de dois anos, podendo ser reconduzidos para um período de mais dois anos.
Na verdade, a firmeza da jurisprudência não deveria depender da composição dos tribunais, mas do comprometimento com a segurança jurídica. Infelizmente a rotatividade de magistrados acaba contribuindo para a ressurreição de debates supostamente encerrados.
Outra razão para a cambiante jurisprudência eleitoral é a fluidez da própria legislação.
Como até o mundo mineral sabe, a maior parte da legislação eleitoral é formulada por seus próprios destinatários: os políticos. Na guerra de reformas eleitorais, não é incomum que se editem leis e até emendas constitucionais para superar entendimentos do TSE ou meramente para melhor atender aos interesses dos poderes constituídos.
Basta lembrar da decisão do TSE em 2002, impondo a verticalização das coligações nas eleições regionais e nacionais, o que foi confirmado pelo STF em 2006.
Insatisfeitos com a obrigação jurídica de coerência partidária, os congressistas aprovaram a Emenda Constitucional n. 52/2006, a qual reformou o § 1ºdo art. 17 da Constituição e liberou a “farra” das coligações.
A terceira razão é o poder normativo conferido à Justiça Eleitoral.
O Código Eleitoral garante ao TSE o poder de expedir normas gerais e abstratas complementares à lei, as quais adotam a forma de resoluções, com o fim de organizar o processo eleitoral.
Se esse poder normativo deveria ser fonte de segurança jurídica, muitas vezes se torna fonte de mais insegurança.
Ora, diante dos entendimentos jurisprudenciais vacilantes da Justiça Eleitoral, as resoluções anuais que regulamenta as diferentes eleições muitas vezes sofrem profundas alterações, a despeito de permanecer idêntico seu fundamento legal.
Claro exemplo disso é a discussão citada acima sobre os efeitos da desaprovação de contas de campanha. Trata-se meramente de descompasso normativo entre a resolução do TSE que regulamentou o pleito de 2010 e a que regulamentará o pleito de 2012. A atuação do TSE no vácuo da lei sofre as mesmas vacilações da jurisprudência, sem que haja tempo e oportunidade para que determinados debates sejam amadurecidos.
Por essas três razões, não é incomum se notar a vacilação em entendimentos outrora seguros. Temas supostamente básicos, como o domicílio eleitoral, constantemente sofrem reveses nos tribunais. Além disso, a eficiência e rapidez da Justiça Eleitoral muitas vezes tolhe recursos que seriam capazes de reafirmar e debater com mais vagar determinados entendimentos.
Por essas razões também é possível notar, em matérias jornalísticas, advogados defendendo teses completamente opostas sobre determinada situação jurídica de um candidato ou de uma eleição, ambos se apoiando em precedentes do TSE. É possível, inclusive, que o desfecho judicial da situação descambe para uma terceira via completamente diferente.
Os colegas advogados eleitoralistas já estão mais que acostumados com isso. E é no balanço dessa rede que todos nos tornamos um pouco Dorival Caymmi.
[1]CÂMARA CASCUDO, Luís da.Rede de dormir – uma pesquisa etnográfica. Natal: EDUFRN, 1983.
[2]Alterou o § 7o do art. 11 da Lei das Eleições, estabelecendo que a“certidão de quitação eleitoral abrangerá exclusivamente a plenitude do gozo dos direitos políticos, o regular exercício do voto, o atendimento a convocações da Justiça Eleitoral para auxiliar os trabalhos relativos ao pleito, a inexistência de multas aplicadas, em caráter definitivo, pela Justiça Eleitoral e não remitidas, e a apresentação[veja-se: apresentação, não aprovação] de contas de campanha eleitoral.”