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A nobreza potiguar

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Imagem: Leandro's World Tour

Francisco de Sales Torres Homem. Não, não é nome de rua, avenida ou logradouro da Cidade do Sol – ou dos buracos. É nada mais nada menos do que o Visconde de Inhomirim. Poucos sabem – eu era um deles até ontem – que este ilustre cidadão foi, atenção, Senador VITALÍCIO pelo Rio Grande do Norte na época do 2º Reinado, entre os anos de 1868 e 1875, quando morreu.

Alguns políticos locais doariam os dois rins por tal posição que, por sorte ou azar, não mais existe – pelo menos para alguns. Por via das dúvidas, recomendo guardar tais órgãos para sua função biológica, pois quem sabe um dia a vitaliciedade seja restabelecida no Senado, momento em que as atribuições renais ultrapassarão as prosaicas atividades de filtrar o sangue.

Informo para tristeza – ou alegria – dos prezados conterrâneos que o ilustre Visconde não rebentou na terra de Poti; veio ao mundo no Rio de Janeiro, capital do Império, sendo filho de um padre e de uma mulata conhecida pelo sugestivo nome de Maria “Você me Mata”; por tal razão ostentava a mulatice legada pelo DNA materno.

Apesar da negritude em um país que ainda mantinha a escravatura, era um homem de alta cultura e preparo intelectual, e por isso galgou degraus até alcançar os postos de Deputado, Senador e Ministro, sendo considerado o negro de maior sucesso do Império. Não obstante, costumava usar peruca para esconder a cabeleira irisada, e pó de arroz para embranquecer o tisno da pele. Dizia o seguinte para justificar a vaidade: “é preciso não deixar aos medíocres e tolos sequer essa superioridade: trajarem bem. As exterioridades têm inquestionável importância”.

Republicano de primeira hora, urdia abertamente maquinações contra a Monarquia e empunhava com ardor a bandeira Abolicionista; mesmo assim recebeu do Imperador em 1871 o título de Visconde de Inhomirim, entrando para o panteão dos príncipes da pátria nascente como um inimigo do regime que o agraciou com a nobreza. Consta que depois se retratou das agressões mais duras.

Por tal razão foi alvo de chacotas por parte da imprensa, que fez publicar o seguinte versinho em “comemoração” à concessão do título:

Vós, gramáticos defuntos,
Não vistes o que hoje vi!
Dois diminutivos juntos,
Um português e um tupi!
Inho, até aqui desinência,
Já se antepõe a mirim
Simbolizando a eminência
Do senhor Inho … mirim!

Vejam que a classe política potiguar já nasceu sob os auspícios da nobreza titulada, de acesso altamente restrito, sendo talvez esta a razão pela qual a nossa elite politiqueira seja impenetrável aos não possuidores de um brasão familiar.

Ausentes os viscondes, barões, condes e duques, sobem à ribalta os vereadores, prefeitos, deputados, senadores e governadores ornados com sobrenomes de tradicionais estirpes potiguares, substitutos da nobreza oficial conferida por decreto de Sua Majestade.

Porém, à diferença dos antigos aristocratas, os nobres da atualidade, rotulados somente com os nomes e sobrenomes dos cargos que ocupam, pelo menos no aspecto intelectual, distam léguas daqueles grandes homens coroados por Sua Alteza Imperial; não todos, claro! A adição da alcunha de Barão ao nome não limpava a reputação ou acendia luzes no seu dono. Vejam que Machado de Assis já detectava a farsa em suas crônicas políticas: “’É um ministério medíocre’. Mas, por Deus, por isso mesmo que é sublime! Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade é um brasão”.

Voltando ao RN temos o seguinte: possuir um mandato eletivo e um sobrenome pomposo vale tanto quanto um título nobiliárquico, notadamente se ele for usado a serviço do chefe do Poder Executivo, distribuidor não de honrarias, mas das condições para exercer a autoridade que o cargo confere. Sem isso, pouco vale o baronato político concedido pelo sufrágio popular.

Por sorte, isso nunca foi um obstáculo intransponível. No Império tínhamos somente dois partidos, o Liberal e o Conservador, que se revezavam no poder de acordo com o humor da elite e do soberano; um simulacro, portanto, vez que o Imperador podia dissolver o gabinete ministerial ou a Câmara, ficando tudo à mercê de sua vontade. A bajulação, portanto, era geral e apartidária – apesar das arengas pontuais.

Hoje, os galhos, ops!, partidos, oferecem aos distintos políticos uma chance de estender tapete vermelho ao governante para praticar a servilidade. Os que não observam tão salutar preceito quedam na oposição, esgoelando-se em discursos malcriados, mas sequiosos por pular em um galho carregado de frutos colocados pelo governo como isca a fim de alugar-lhes a fidelidade.

Nosso Francisco de Sales Torres Homem conseguiu seu título de visconde à custa de libelos republicanos e abolicionistas contra a monarquia, mas isso não significa que outros tantos seguiram o mesmo caminho arriscado. Aliás, hoje é até mais fácil.

É que a bajulação era somente ao Imperador, assentado no Poder Moderador, a subverter o legado da Rainha da Inglaterra ao mundo civilizado. Hoje, os postulantes à autoridade nobiliárquica têm três caminhos a trilhar para auferir o estrelato político: o municipal, o estadual e o federal. Em algum desses três alvos ele há de acertar, quando não em todos, simultaneamente. E acertam, invariavelmente! Estou para ver um, unzinho que seja que não esteja a proferir palavrórios elogiosos a um dos chefes do Executivo destas três esferas de poder. É o preço que se paga pelo acesso às honraria$ de estado.

Em favor do Visconde pesa o fato de ter sido agraciado pela coragem de contestar o regime com as nobres reivindicações abolicionista e republicana, e não praticando a subserviência antecipada dos vendilhões – além de ser, convenhamos, uma figura muito mais interessante.

Assim, saudosista incurável que sou, e diante das poucas opções, prefiro gastar meus minguados confetes com o nosso Visconde de Inhomirim, representante dos comedores de camarão no Senado Imperial, cujo molde do qual foi feito jaz sepultado em local incerto e não sabido pelo miserável fisiologismo reinante, praticado livremente em meio a planos de vitaliciedade e promessas de doações renais.