Acredito que a essência da arte seja a liberdade. A liberdade do próprio indivíduo que gera esta arte, a liberdade que direciona suas pinceladas, suas palavras e sua vida. Por isso não é por acaso que a arte incomode tanto os governos autoritários e seus ranzinzas administradores. Na África do Sul, em pleno apartheid (política de segregação racial que perdurou até 1994 neste país), a liberdade da poetisa Ingrid Jonker (Carice van Houten) também incomodava, principalmente seu pai racista e responsável pela censura naquele país. Borboletas Negras é uma cinebiografia sobre esta poetisa que teve seu mais celebre poema, The Dead Child of Nyanga (A Criança Morta de Nyanga), narrado por Nelson Mandela em seu primeiro discurso na assembleia democrática, depois do fim do apartheid.
A diretora Paula van der Oest consegue equilibrar em doses distribuídas com moderação o lado mítico de uma cinebiografia poética com o lado político de um país em que negros eram separados dos brancos de todas as maneiras, das cadeiras num ônibus a bairros miseráveis, não permitindo nem mesmo que suas crianças desfrutassem de parques destinados ao uso dos filhos dos brancos. Detalhe este apontado pela própria protagonista. E que, para se locomover de uma parte a outra do seu próprio país, a população negra precisava de um visto.
E é justamente num protesto sobre esse controle sobre o ir e vir da população negra que Ingrid Jonker presencia algo que vai influenciar de modo dramático sua própria poesia.
Para um ser formado na paixão e na liberdade como a protagonista, não é de surpreender como parece ser difícil conviver com ela. E ela sabe disto, mas muito mais difícil parece ser para ela suportar viver num mundo cheio de tabus, onde tudo parece conspirar contra essa liberdade. E a liberdade é um tabu nas sociedades autoritárias, por isso não é por acaso que seja justamente essa palavra que mais incomoda seu pai ao ler o famoso poema da filha.
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Como o representante ativo e simbólico da política daquele país, o seu pai, interpretado por Rutger Hauer, está envolto numa capa impenetrável de amargura e rancor. Ele é a rocha que a filha não consegue penetrar, por mais que tente. Testemunhamos o entusiasmo quase ingênuo, mas natural da filha em querer compartilhar com o pai seus poemas e o sucesso que eles começam a ter. E desabamos junto com ela por ver a resposta fria e cruel de um pai que tem como função pública censurar textos como esses que ela escreve. Embora a frieza do pai com a filha seja muito mais do que a censura aos seus poemas. Com isso Hauer chega a incomodar com seu talento de interpretar essa pedra rígida e fria de sentimentos que só mesmo o imenso amor da filha pelo pai poderia suportar por tanto tempo, apesar de tudo contribuir não para o amor, mas para o ódio a um pai tão amargo.
Por causa dessa sua paixão pela liberdade, Ingrid Jonker não tem um lar definitivo. Desde cedo foi levada para a casa do seu pai depois que a mãe morreu, depois foge de lá para poder escrever; mora numa casa na praia com o amante escritor que lhe salvou de ser tragada pelo oceano, mas foge de lá para poder amar com a liberdade que incomodava até mesmo seu companheiro na arte.
Num quarto separado da casa do pai, ela escrevia seus poemas nas paredes, pois, parecia que para ela qualquer superfície era seu caderno de poemas, seja a parede ou o vidro úmido de uma janela numa Paris chuvosa. Por isso, a história de Ingrid Jonker faz pensar que o verdadeiro lar de um poeta é sua própria poesia, e quando ela declara que não consegue mais escrever, percebemos que agora, mais do que nunca, ela perdeu seu lar.
Ficha técnica:
Black Butterflies – 100 min
Noruega, África do Sul,Alemanha – 2011
Direção: Paula van der Oest
Roteiro: Greg Latter
Elenco: Carice van Houten, Liam Cunningham, Rutger Hauer, Grant Swanby, Nicholas Pauling, Graham Clarke, Leon Clingman, Jennifer Steyn, Candice D’Arcy, Florence Masebe
Imagens: Tribeca Film – Press Website