Quando se estuda as classes, dizia o sociólogo francês Pierre Bourdieu, é importante não somente apreender as representações que os agentes têm do mundo, mas integrar tal análise ao estudo mais amplo da contribuição que os mesmos agentes dão para a própria construção do mundo, isto é, se faz necessário também uma reflexão objetiva sobre o “trabalho de representação”. Quer dizer, não encerrar a análise apenas na percepção do mundo social, mas soma-la com o ato de estruturação do mundo operado na própria ação dos agentes.
É isto que marca, por exemplo, a discussão conceitual no Brasil acerca da “nova” classe de agentes que vem ganhando musculatura em nossa sociedade do trabalho. Se, como já foi detectado por especialistas em morfologia de classe, o Brasil vivencia atualmente um acentuado antagonismo de classe entre as frações letradas e a nova classe emergente -, também vem ganhando corpo a percepção de que a própria definição legítima do que vem a ser a “nova” classe emergente está sendo objeto de forte disputa entre especialistas de diversas áreas (sociólogos, economistas, jornalistas).
Para muitos economistas (destaca-se nesse primeiro grupo, Marcelo Neri, economista da FGV), trata-se de uma “nova classe média” que vem emergindo na última década, no bojo do relativo período de prosperidade econômica pelo qual tem passado o país. Para alguns sociólogos (Jessé Souza é talvez a voz mais representativa), em contraposição a apreensão economicista, embora “nova”, a emergente classe de agentes não constituiria efetivamente uma “classe média”, mas na verdade, uma nova fração ou mesmo, uma nova configuração da “classe trabalhadora” que está se sedimentando no contexto da nova organização institucional do capitalismo brasileiro, nomeadamente um capitalismo do tipo flexível ou pós-fordista.
De modo um tanto grosseiro, podemos distinguir as duas interpretações científicas fundamentalmente pelos pressupostos analíticos adotados no critério de classificação dos agentes. Enquanto a vertente economicista a qual Neri está vinculado, percebe e nomeia a posição de classe a partir da ênfase na renda econômica e no poder de compra dos indivíduos, Jessé Souza chama atenção para aspectos scioculturais decisivos que não podem, segundo ele, ser negligenciados quando se problematiza a coordenada social de uma classe, dentre aqueles aspectos, a posse de uma cultura escolar e emocional especializada. Assim, se é verdade que a nova classe compartilha mais ou menos os mesmos rendimentos econômicos com a classe média estabelecida no Brasil, o que, segundo esse critério, permitiria situá-la na mesma coordenada econômica, o mesmo não se pode afirmar quando se leva em consideração a coordenada cultural e a economia emocional, traços socioculturais que, na avaliação de Souza, representam um corte decisivo entre a classe média e a nova classe trabalhadora.
Malgrado as diferenças de posicionamento e diagnóstico, tanto Marcelo Neri quanto Jessé Souza chegam a reconhecer a dificuldade de se precisar cientificamente a nova classe social que tanto tem causado reboliço na economia brasileira. Souza atribui essa dificuldade ao fato da nova classe apresentar características muito particulares que a distinguem não somente da classe média, mas também da classe trabalhadora tradicional, esta última, até pouco tempo, identificada com o operariado industrial e que, na leitura de especialistas em sociologia do trabalho, a exemplo de Ricardo Antunes, vem sofrendo um forte processo de refluxo e precarização de suas condições de reprodução material, consequência da flexibilização do trabalho e de políticas “neoliberais” adotadas nos últimos anos. A nova classe trabalhadora, por outro lado, em forte ascensão, apresentaria condições “subjetivas” (economia emocional, moral e cultural) bastante afinadas com as novas condições objetivas do capitalismo brasileiro (principalmente no que concerne ao regime de acumulação flexível), o que explicaria em grande parte, o segredo de suas “virtudes” no empreendimento econômico.
Não obstante essa questão do debate sobre os critérios de análise mais apropriados na definição da nova classe emergente brasileira, seria preciso também analisar os interesses específicos em disputa pelo poder de definir a “realidade” da nova classe.
Sobre isso, embora a bola já tenha sido cantada por Jessé Souza, foi no interior mesmo da trincheira da vertente economicista que se levantou a voz mais firme no que se refere ao conteúdo explosivamente político e ideológico da luta simbólica pela definição legitima da nova classe brasileira.
Refiro-me explicitamente a Marcio Pochmann, economista brasileiro com grande reconhecimento acadêmico e que atualmente ocupa a presidência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Pochmann, em artigo publicado no caderno de “Opinião” do jornal Folha de São Paulo (edição de 02 de janeiro de 2012)*, verbalizou de modo mais explicito até então, os potenciais efeitos práticos do debate atual sobre a definição conceitual adequada para a nova classe social e o quão a própria ciência está inevitavelmente envolvida nessa disputa classificatória. E mais, Pochmann, contrariando a própria visão dominante no interior do governo federal do qual o mesmo faz parte, assume abertamente a não concordância com o termo “nova classe média” usado para se definir a nova classe emergente brasileira.
Se aproximando mais ou menos da mesma interpretação de Jessé Souza, diz Pochmann:
A centralidade do trabalho, conferida pelo impulso das políticas públicas em pleno ambiente de recuperação econômica dos últimos anos, foi responsável pelo fortalecimento do segmento situado na base da pirâmide social brasileira.
(…)
O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média.¹
Sobre a visão equivocada de nova classe média, continua Pochmann,
Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais.
De fato, conforme alerta Pochmann de modo um tanto “bourdiesiano”, a disputa pela definição oficial da nova classe brasileira não é uma luta “gratuita” ou meramente conceitual. Ela tem implicações práticas na própria condução futura das políticas públicas do país. Isso porque a consolidação dominante da definição de “nova classe média” atenderia satisfatoriamente aos interesses da lógica mercadológica, que encontraria nesse conceito, sustentação legitimadora para políticas de diminuição da oferta de serviços públicos do Estado (saúde, educação e previdência social), uma vez que uma classe media tenderia hipoteticamente a se servir dos mesmos serviços na chamada iniciativa privada, o que tornaria o Estado Social ainda mais dispensável. Entende-se mais claramente nesse último ponto, a sensibilidade analítica de Pochmann para as consequências políticas da aceitação generalizada do conceito de nova classe média, principalmente na sua aceitação apressada por muitos jornalistas de economia e de finanças.
Certamente, Jessé Souza, em concordância com Pochmann, acrescentaria que o poder de dizer o que é o que deseja a nova classe brasileira significaria também o direito de “interpretar a direção do capitalismo brasileiro no presente e no futuro”. E mais, de justificar moralmente o capitalismo atual, naquilo que ele tem de “virtude” e de “violência”. Daí a importância de se compreender as artimanhas opacas jogadas no jogo. Não somente para jogá-lo melhor, mas talvez para refunda-lo em novas regras.
*O título do artigo aqui em discussão, assinado por Marcio Pochmann é “Novos Personagens?” e está disponível no endereço eletrônico abaixo, somente para assinantes do portal UOL ou Folha:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/17890-novos-personagens.shtml
1 Todos os sublinhados destacados na reprodução das falas de Pochmann são de nossa autoria..