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A produção moderna do trabalho escravo no Brasil ou deu default na ideologia da brasilidade

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É quase uma obviedade comum, grande parte de nós, brasileiros, explicarmos as nossas mazelas sociais (desigualdade, corrupção, marginalização) como o traço de um pecado original da formação social brasileira: termos sido colonizados por uma cultura “atrasada” como a portuguesa. Isso se deve, defende o sociólogo brasileiro Jessé Souza, a uma interpretação dominante que enxerga a “singularidade cultural brasileira” a luz de sua principal influência cultural, qual seja, a “herança ibérica”. É essa visão que vamos encontrar, por exemplo, em Sergio Buarque de Hollanda, particularmente no seu clássico “Raízes do Brasil”, onde o mesmo vai defender a tese das raízes ibéricas da formação cultural e institucional do Brasil. Guardada as devidas diferenças entre enfoques teóricos, também é o que encontramos em cientistas sociais brasileiros como Raimundo Faoro, Roberto Damatta e Simon Schwartzman.

De maneira geral, a concepção de mundo ibérica faz parte da nossa autocompreensão erudita e leiga e constitui um importante pano de fundo moral e cognitivo na interpretação de fenômenos sociais, tais como desigualdade social, corrupção e marginalização. Todos explicados como “sintomas” culturais de um “mal de origem”, isto é, devido a persistência de práticas de desvio institucional típicas da cultura pré-moderna ibérica.

O problema nesse tipo de interpretação culturalista, é que ele ignora qualquer força estruturante de instituições modernas como Estado e mercado; e trata a cultura quase sempre em termos estáticos (a-histórico), assim como uma “entidade homogênea, totalizante e auto- referida. Além disso, tal modelo reducionista impossibilita perceber a constituição da formação social brasileira naquilo que ela tem de fundamentalmente distinto em comparação com as sociedades europeias, o que incluiríamos o exemplo de Portugal. E mais grave ainda, de perceber que muitos de nossos problemas sociais (desigualdade, corrupção e pobreza) podem ter sido produzidos no bojo na própria estrutura institucional do capitalismo moderno. Esse ultimo argumento tem sido atualmente bastante discutido por diferentes cientistas sociais brasileiros, a exemplo de Jessé Souza e Adalberto Cardoso, muito mais preocupados em problematizar o processo de modernização brasileira numa perspectiva sócio-institucional, diacrônica e relacional.

Pois bem, não obstante o árduo e louvável esforço dos últimos autores em repensar o processo civilizatório brasileiro sobre outra perspectiva analítica, assistimos também a publicação de estudos coordenados pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) que seguem mais ou menos mesma linha de argumentação no que se refere ao caráter moderno de uma série de problemas sociais existentes no Brasil. Ao invés de reproduzir a tese culturalista do mal de origem, pesquisadores brasileiros em parceria com a OIT têm chamado atenção para a produção social de formas “modernas” de trabalho escravo, ou seja, de exploração predatória da mão de obra laborial em regimes de escravidão, visando atender os imperativos do capitalismo globalizado. Para maior esclarecimento, vale a pena reproduzir o trecho de uma reportagem assinada pela jornalista Clara Roman e publicada hoje (27/10/2011) no sítio da Revista Carta Capital:

“Adonia Prado, pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e que participou do estudo, alerta que esse tipo de trabalho, abolido em 1888, faz parte da estrutura do capitalismo avançado e da produção de commoditties atuais. “Ele é funcional a esse modo de produção globalizado altamente concetrador de renda”, explica Prado.”

Dito de outro modo, assim como tem contribuído estruturalmente para a produção e reprodução da desigualdade social, o capitalismo, agora em sua versão “flexível” e “desorganizada”, também tem produzido regimes “modernos” de escravidão do trabalho que convivem “funcionalmente” bem com a lógica de produção e acumulação de capital. O que contraria mais uma vez a tese faoriana (compartilhada também por Fernando Henrique Cardoso e Roberto Damatta) sobre a necessidade de um “choque de capitalismo”, enquanto pré-condição de acesso do Brasil à modernidade. Em vez do mito do “eterno retorno”, agora, o crepúsculo dos ídolos traz a desgraça de seus heóis míticos e profetas da teodicéia tupiniquim.

Obs: A seguir, o endereço eletrônico que permite ter acesso integral à reportagem da Carta Capital: http://www.cartacapital.com.br/politica/escravidao-no-cerne-do-capitalismo-de-ponta.