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O transporte público e a servidão voluntária

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“Sempre perguntam-me se conheço Tyler Durden”

Sempre perguntei-me a respeito das coletividades. O que leva tantos seres humanos a agirem de uma só forma, a respeitarem regras e normas mesmo quando estas nos parecem absurdas. Quando mais novo esta inquietação sempre me rendeu anotações na agenda do colégio. Que força é esta que nos oprime e molda nossas ações, impedindo que tentemos criar algo novo ou questionar modelos evidentemente falidos?

Mais uma vez a questão do transporte público tornou-se notícia. Há tempos vejo o tema do transporte urbano ser assunto comum em mesa de bar. Nunca boas notícias, mas está sempre sendo notícia.  Afinal, o que levaria tantas pessoas a fazer o que fazem, pagar os valores que pagam? Qual o argumento legítimo para justificar tais valores? Por que todos, ao chegar na frente do cobrador, não dizem: só tenho “X” (R$ 1,50 penso já ser um valor alto, R$ 1,00 o justo), e passam de uma vez na roleta? É o que vale. O que é justo. O que se merece pagar. Frotas desconfortáveis, quentes, sem horários e muitas vezes lotados. Pagar caro por isso? Por estas condições? Os cobradores serão contra. Ou serão demitidos, no fundo, apoiam. Ainda assim, já cantam as vozes no twitter “vou ter que pular a roleta, por causa dessa borboleta”, o dinheiro do trabalhador não é capim. Eu pulo a roleta sim!” ♫

Somos nós mesmos que aceitamos o aumento. Um motorista e um cobrador não possuem forças para conter uma multidão de pessoas que possuem a certeza que os valores praticados são um desrespeito e uma afronta à população. Somos nós que, de boa vontade, aceitamos o aumento. Ninguém nos força, não nos obrigam, nós mesmos legitimamos a ação. O fazemos em nome de uma sociedade civil enfraquecida que nada pode contra o poder do Mercado (empresários) e do Estado. Nada podemos por que assim queremos. Toda essa desgraça, este infortúnio, não vem, pois, do inimigo, mas de nós mesmos.

A este respeito da nossa servidão voluntária um filósofo e jurista da idade média, Étienne de La Boétié, nos faz a seguinte colocação no seu livro “O discurso da servidão voluntária”:

Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem! Deixais levar, à vossa frente, o mais belo e o mais claro de vossa renda, pilhar vossos campos, roubar vossas casas e despojá-las dos móveis antigos e paternos; viveis de tal modo que não podeis vos gabar de que algo seja vosso; e pareceria ser agora uma grande fortuna para vós conservar a meias vossos bens, vossas famílias e vossas vidas vis; e todo esse estrago, esse infortúnio, essa ruína vos advêm não dos inimigos mas sim, por certo, do inimigo, e daquele que engrandeceis […] Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós? Os pés com que espezinha vossas cidades, de onde lhe vêm senão dos vossos? Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e traidores de vós mesmos? […] ficais mais fracos para torná-lo mais forte e rígido mantendo mais curta a rédea; e de tantas indignidades – que os próprios bichos ou não as sentiriam ou não a suportariam – podeis vos livrar se tentais, não vos livrar mas apenas querer fazê-lo. decidi não mais servir e sereis livres; não pretendo que o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis como um grande colosso, de quem subtraiu-se a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.”

Acredito em uma revolução jocosa. As revoltas deveriam ter caráter humorístico. Sem armas e sem violência física. Vencer pelo cansaso e obstinação.  Uma revolução jocosa consiste em não levar nada a sério, em compreender que nada somos além de convenções criadas por nós mesmos. Este novo modelo de revolução não precisa ir às ruas para protestos, unindo-se em manifestações organizadas e sistemáticas. Tudo isso dá muita dor de cabeça e pode gerar violência e confusão. Este foi o modelo de séculos passados. Não mais funcionará.

A revolução jocosa há de existir a partir de zonas autônomas temporárias. Não é preciso ter formas nem mesmo reuniões. Aquilo que toma forma pode ser golpeado. Estas zonas não possuem formas e não estão em lugar algum, ao mesmo tempo que podem tomar forma e surgir em vários lugares ao mesmo tempo para logo depois desfazerem-se.  Cada parada de ônibus e cada 5 pessoas que se aglomeram já formam o exército para esta nova luta. São pessoas suficientemente lúcidas para olharem entre si e perceberem que algo não está certo e simplesmente negar. Não aceitar.

O problema do transporte público é um lugar comum. Vários são os exemplos que já ouvimos falar. Nos EUA, o pastor Martin Luther King convenceu os negros que não mais deveriam pegar ônibus. Eram diariamente desrespeitados e agredidos. A solução encontrada foi andar, caminhar, caminhar e caminhar. Os negros não mais pegavam ônibus. Andaram à pé, às multidões e venceram. Na Holanda o transporte público, já na década de 60, era criticado pela poluição visual e atmosférica causada. Surgiu a revolução “Provos”, onde bicicletas pintadas de branco auxiliaram o surgimento de uma revolução baseada no humor, sarcasmo e contra-poder.

Revoluções não podem repetir-se como receitas de bolo. Revoluções são como queijos. Até a altitude do local irá definir o seu sabor. Isto faz com que alguns queijos tenham gostos únicos. Revoluções também possuem gostos únicos e a repetição de suas receitas irão formar tão somente caricaturas do passado e reproduzirão uma caricatura do presente. Temos que, nós mesmos, encontrar os meios para, bem humorados e sem violência, lutar contra as injustiças. Vencer pela inteligência, pelo sarcasmo e deboche. Nunca pela força. Negar para afirmar.

Em momentos assim, é impossível não lembrar…
” – Sempre me perguntam se conheço Tyler Durden.
– Três minutos.
– É isso aí. Chegou a hora. Quer dizer alguma coisa para celebrar a ocasião? […]
– Eu vejo aqui os homens mais fortes e inteligentes. Vejo todo esse potencial desperdiçado. Uma geração inteira de garagistas, garçons, escravos de colarinho branco. A propaganda nos põe para correr atrás de carros e roupas. Trabalhar em empregos que odiamos para comprar coisas inúteis. Somos uma geração sem peso na história. Sem propósito ou lugar. Não temos uma Guerra Mundial. Não temos a Grande Depressão. Nossa Grande Guerra é a espiritual. Nossa Grande Depressão, é a nossa vida. Fomos criados através da TV para acreditar que um dia seríamos milionários e estrelas de cinema, e rock stars. Mas não seremos.  Aos poucos tomamos consciência do fato. E estamos muito, muito putos.”

É mentira que as coisas não mudam. Enfim, é isso.