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O Mundo Além do Fim da História

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Luiz Renato Vieira é consultor Legislativo do Senado Federal e doutor em Sociologia (UnB), com pós-doutorado em História Comparada (IFCS-UFRJ)

Publicado em 1992, O Fim da História e o Último Homem, de autoria do economista e cientista político norte-americano Francis Fukuyama, propõe que a expansão das democracias liberais e das economias de mercado representaria o estágio máximo do desenvolvimento sociopolítico da humanidade, encerrando os grandes embates ideológicos que marcaram a história. Revisitar a obra, considerando os desafios contemporâneos, pode ser um interessante exercício na busca de uma melhor compreensão do mundo em que vivemos.

Inspirado pela filosofia de Hegel, Fukuyama interpretava o colapso da União Soviética e o predomínio da democracia liberal sobre o fascismo e o comunismo como a confirmação definitiva desse modelo como o destino final das sociedades. Ele não sugeria que os acontecimentos históricos cessariam, mas argumentava que, de uma certa forma, os principais confrontos ideológicos já haviam sido resolvidos.

O lançamento do livro provocou grande controvérsia entre acadêmicos das ciências sociais. Críticos destacaram que disputas de caráter étnico, religioso e nacionalista continuavam relevantes, além de apontarem que a democracia liberal não era amplamente aceita. Outro ponto de contestação foi a possível simplificação das dinâmicas políticas globais e a resistência de diferentes culturas a um modelo de governança inspirado no Ocidente. Apesar das objeções, o livro teve um impacto duradouro nos debates sobre globalização, transição democrática e geopolítica do pós-Guerra Fria.

No contexto contemporâneo, marcado pelo surgimento das redes sociais, pelo poder econômico e político das big techs e pelo crescimento assustador da extrema direita ao redor do mundo, a tese de Fukuyama ganha novas camadas de reflexão. As plataformas digitais, como Meta (Facebook), Google, Amazon e Twitter, transformaram não apenas a comunicação, mas também a política, a economia e a cultura.

Pensadores contemporâneos, como Shoshana Zuboff, autora de A Era do Capitalismo de Vigilância (2019), argumentam que essas empresas acumularam um poder sem precedentes, moldando comportamentos, influenciando eleições e redefinindo a noção de privacidade e liberdade individual. Esse cenário desafia a ideia de Fukuyama de que a democracia liberal seria o estágio final da evolução sociocultural, uma vez que o poder concentrado das big techs pode minar princípios democráticos, como a transparência e a igualdade.

Além disso, teóricos como Manuel Castells, em A Sociedade em Rede (1996), destacam que as tecnologias informacionais criaram novas formas de organização e mobilização política, mas também amplificaram polarizações e discursos de ódio. Para ele, as redes não são apenas uma estrutura tecnológica, mas um modo de funcionamento da sociedade contemporânea.

Para esse autor, a democracia liberal, longe de ser um consenso global, enfrenta crises de legitimidade, com o avanço de populismos, autoritarismos e a desconfiança crescente nas instituições tradicionais. Nesse sentido, a tese de Fukuyama se demonstra incompleta diante de um mundo onde a tecnologia redefine as bases do poder e da governança.

É importante observar que autores que se debruçaram sobre as caraterísticas da sociedade contemporânea observaram que as redes sociais e a economia digital promovem uma forma de controle mais sutil, baseada na autoexploração e na vigilância constante. Um dos estudiosos notáveis, nesse campo, é Byung-Chul Han, que, em Sociedade do Cansaço (2010) e Psicopolítica – o neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2014), argumenta que a liberdade promovida pelas democracias liberais é, em muitos casos, uma ilusão, já que os indivíduos estão cada vez mais submetidos a mecanismos de controle algorítmicos e a uma lógica de produtividade e consumo incessantes.

O crescimento da extrema direita em diversas partes do mundo, como nos Estados Unidos, Brasil, Hungria, Polônia, Índia e, mais recentemente, Alemanha, adiciona outra camada de complexidade ao debate. Movimentos populistas de direita, muitas vezes alimentados por discursos antiglobalização, xenofobia e nacionalismo exacerbado, têm ganhado força, questionando a estabilidade das democracias liberais. A ascensão de lideranças de grande projeção nesse campo mostra que a polarização política e o descontentamento social são explorados para desafiar instituições democráticas e promover agendas autoritárias. Esse fenômeno sugere que, longe de presenciarmos o “fim da história”, estamos testemunhando uma perigosa reconfiguração do cenário político global.

Embora O Fim da História tenha sido uma obra importante para entender o otimismo do pós-Guerra Fria, o contexto contemporâneo exige uma revisão crítica de suas premissas. O poder das grandes empresas de tecnologia, a influência das redes sociais, as novas formas de controle e manipulação e o crescimento da extrema direita desafiam a noção de que a democracia liberal é o estágio final da história. Em vez disso, vivemos em um mundo onde a tecnologia redefine as bases do poder, e a luta por justiça, igualdade e liberdade continua a evoluir.

Longe do fim previsto por Fukuyama, vivemos um tempo de disputas intensas, onde a desinformação amplia desigualdades e cria mecanismos sofisticados de dominação. O futuro permanece incerto, exigindo vigilância e resistência para preservar a democracia e os direitos humanos.