Sônia Soares, Nutricionista e professora UFRN.

Tem sido comum a referência à Vigilância Sanitária, nos meios onde é discutida, como sendo “a forma mais complexa de existência da Saúde Pública, pois suas ações, de natureza eminentemente preventiva, perpassam todas as práticas médico-sanitárias: promoção, proteção, recuperação e reabilitação da saúde”(1).

De fato, a julgar pelo texto constitucional (artigos 196 a 200), configura-se, explicitamente, a importância da Vigilância Sanitária para o SUS. O art. 200 apresenta um rol de oito atribuições conferidas ao SUS, das quais temos, resumidamente: I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde; II – executar as ações de vigilância sanitária […]; VI – fiscalizar e inspecionar alimentos, […]; VII – participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Portanto, mais da metade da lista é reconhecidamente atribuição da Vigilância Sanitária. 

Sendo direito de todos e dever do Estado, portanto, de relevância pública, dentre as ações e serviços de saúde, inclui-se o conjunto de ações “capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde”(2). Ressalte-se que, a partir do SUS, a Vigilância Sanitária deixa de ter por objeto a norma, para voltar sua atenção aos riscos e aos problemas. Corolário disso, o território passa a ser fundamental para a atuação da Vigilância Sanitária necessária ao SUS.

Mas, então, se é tão importante assim, pelo menos do ponto de vista jurídico, por que a Vigilância Sanitária parece invisível nos planos de governo apresentados pelos candidatos e pela candidata à Prefeitura de Natal? Será que não se reconheceu o seu papel nem mesmo como instrumento de organização econômica da sociedade, para além de uma ação de saúde pública? Ou será por isso mesmo, por seu papel regulador das relações de produção e consumo, que a Vigilância Sanitária ficou de fora das propostas apresentadas nos planos de governo? Afinal, o campo típico de atuação da Vigilância Sanitária é permeado por conflitos de interesses, onde direitos disputam espaço nas decisões da gestão: direitos humanos, como a saúde e a alimentação, e direitos do mercado, em uma sociedade capitalista liberal.

Infelizmente, analisando os planos de governo dos candidatos e da candidata à Prefeitura de Natal (3), a referência à Vigilância Sanitária é escassa, vaga e precária, quando não inexistente. A seguir, teço algumas considerações, sem qualquer intenção de esgotar as análises que podem ser feitas.  

  1. Sobre a inclusão do termo “Vigilância Sanitária” (Visa): os planos de Paulinho e Carlos, quando abordam a Vigilância Sanitária, o fazem, acertadamente, no item “Saúde” da proposta. Porém, se o plano de Carlos aborda a Vigilância Sanitária apenas como componente de uma Política Municipal de Proteção e Bem-Estar Animal, o plano de Paulinho apenas propõe fortalecer a vigilância sanitária, sem dizer qual o sentido deste “fortalecimento”. 
Item analisadoPaulinhoRafaelCarlosNatália
Aborda a VisaSim, no item ‘Saúde’ (p. 5)NãoSim, no Eixo II, Item 1 ‘Saúde’ (p. 11)Não
Proposta para a Visa‘Fortalecer a Vigilância Sanitária Municipal’ (intervenção proposta, p. 8)Não tem‘Fortalecer a Vigilância Sanitária e Controle de Zoonoses’ (Política Municipal de Proteção e Bem-Estar Animal (p. 11)Não tem

A ausência de propostas é preocupante, uma vez que a Covisa, no governo de Carlos, sofreu um processo violento de destruição de suas equipes distritais, por decisão unilateral, sem debate e sem diálogo, do Secretário Municipal de Saúde que assinou a Portaria 278/2016, publicada no DOM de 04.08.2016, na qual, ao tentar justificar sua decisão, nada mais fez que reconhecer sua incompetência como gestor. Exemplo disso, na referida Portaria, o Secretário afirmou existir “Ingerência do Nível Central em relação aos núcleos técnicos distritais”. A Portaria diz ainda que a “reorganização”, que transferiu 27 trabalhadoras e trabalhadores das equipes distritais para o Departamento de Vigilância em Saúde, é “temporária”, mas não explicita por quanto tempo, levando a supor que a decisão não teve qualquer planejamento. A própria redação da Portaria parece ter sido feita sem a necessária revisão da técnica jurídica, pois em seu preâmbulo cita o art. 51 da Lei nº 8.666/1993. Além disso, a Lei eleitoral 9504/97 proíbe transferir servidor público em período eleitoral, mas os 27 servidores das quatro Covisas foram transferidos em plena campanha eleitoral, sendo o Prefeito Carlos Eduardo um dos candidatos à época.

Fato é que o atual plano de governo de Carlos parece desconsiderar completamente a importância da Vigilância Sanitária para a saúde pública e parece ter esquecido o duro golpe que seu Secretário aplicou nas Covisas em 2016. Importa recordar aqui que a Covisa passou de modelo inovador, implantado no início dos anos 90, quando suas ações eram realizadas também por profissionais lotados nas unidades básicas de saúde, para uma distribuição de todos os profissionais em quatro Distritos Sanitários; mas quando um novo Distrito foi criado (2005), no governo Carlos Eduardo, que dividiu o Distrito Norte, não houve a criação de uma nova equipe de Covisa para o Distrito recém-criado, revelando seu descaso com esse importante campo de atuação do SUS. A Vigilância Sanitária tem sido tão desimportante nas duas últimas décadas que um novo Distrito foi criado, com toda a estrutura existente nos outros, exceto pela Covisa. Silenciosamente, Natal passou a ter cinco Distritos Sanitários e continuou com quatro Covisas. A quem interessa ter menos Vigilância Sanitária na cidade? Ao setor regulado? À administração? Ao cidadão?

  1. Sobre a importância do Código Sanitário de Natal para a Vigilância Sanitária não citada nos planos de governo:
Item analisadoPaulinhoRafaelCarlosNatália
Relaciona o código sanitário com a organização da VisaNão Não NãoNão

O Código Sanitário de Natal, instituído pela Lei municipal 5132/99 estabelece em seu art. 3º que o SUS de Natal “compõe-se de um conjunto de estabelecimentos organizados em rede regionalizada por Distrito Sanitário, hierarquizada por nível de complexidade e natureza jurídica do prestador de serviços, sejam eles públicos ou privados, voltados ao atendimento integral de sua própria população e inserido de forma indissociável no SUS, em suas abrangências estadual e nacional”. O art. 5º estabelece que o Município deve planejar e organizar suas ações e serviços de saúde, observando “as especificidades dos problemas locais, identificados junto aos Distritos Sanitários”.  Nosso Código está de acordo com o Art. 10 da Lei 8080/90, § 2º, no qual está previsto que o município pode “organizar-se em Distritos de forma a integrar e articular recursos, técnicas e práticas voltadas para a cobertura total das ações de saúde”. Ainda no Código, art. 8º, XI, “a descentralização da gerência dos serviços para os Distritos Sanitários” é um dos princípios que deve orientar a organização do SUS Municipal.

A partir do que foi dito anteriormente, é possível construir o seguinte raciocínio: 

  1. A Vigilância Sanitária é campo de atuação do SUS (art. 200 da CRFB e art. 6º Lei 8080/90)
  2. O Distrito Sanitário é uma das formas previstas na Lei 8080/90 que permite ao Município se organizar para desenvolver suas ações e serviços de saúde (art. 10)
  3.  A descentralização da gerência dos serviços de saúde para os Distritos é um princípio previsto no Código Sanitário de Natal (art. 8º, XI)
  4. A Portaria assinada pelo Secretário de Saúde, publicada no DOM de Natal transfere as equipes de Covisas distritais para o nível central.

Conclusão: a Portaria é ilegal. Nenhum dos planos de governo que citam a Vigilância Sanitária consideram o raciocínio elaborado acima, a partir dos fatos e das leis.

Temos, então, que Carlos destruiu as Covisas e deixou a herança maldita da centralização das equipes distritais. Nesse sentido, pergunta-se ao candidato Paulinho, sobre o significado de sua proposta de “fortalecer a vigilância sanitária”: significa fortalecer o desmonte iniciado por Carlos? Significa fortalecer o distanciamento entre as equipes centralizadas no Departamento de Vigilância em Saúde e a rede de serviços de saúde gerenciada pelos Distritos Sanitários? Significa fortalecer o descumprimento do Código Sanitário de Natal aprovado na Câmara de Vereadores?

  1. Sobre a relação da Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS) com a Vigilância Sanitária e a importância do território: nenhum dos planos de governo faz referência à Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 588/2018 que institui essa Política. Há a citação no plano da candidata Natália de “Reorganizar a vigilância em saúde no município, […], visando qualificar as ações de controle de riscos, doenças e agravos”, o que não parece estar de acordo com a PNVS.
Item analisadoPaulinhoRafaelCarlosNatália
Cita  PNVSNãoNãoNãoNão. Fala em “Reorganizar a vigilância em saúde no município, […], visando qualificar as ações de controle de riscos, doenças e agravos em todas as regiões da cidade (objetivo 2, eixo I (p. 12)

A grande novidade da PNVS, em relação à Vigilância Sanitária, foi incorporar, na definição de vigilância em saúde, a atividade de “regulação”, que não consta na proposta da candidata, sendo essa uma atividade inerente ao poder de polícia, pois consiste no tripé: regulamentação, fiscalização e controle.  Além disso, a PNVS superou a dicotomia anterior entre um Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (coordenado pela Anvisa) e um Sistema Nacional de Vigilância em Saúde (coordenado pela secretaria de vigilância em saúde), reconhecendo que a implementação da PNVS compete à SVS e à Anvisa (art. 11, I, a), e afirmando que cabe às Secretarias de Saúde, a gestão da vigilância em saúde no âmbito municipal (art. 13). Estranha-se, portanto, que nenhum dos planos de governo aborde a PNVS e o papel regulador da Vigilância Sanitária, ou será que candidatos e candidata defendem a desregulação?

Por fim, outro aspecto inovador da PNVS que se relaciona com a Vigilância Sanitária e a herança maldita de Carlos, diz respeito ao território comum da atenção primária em saúde/APS (atenção básica) e das ações de vigilância em saúde, que inclui a Vigilância Sanitária. É neste território comum de atuação que problemas podem ser identificados e respostas podem ser elaboradas, inclusive, com a participação da população.

Item analisadoPaulinhoRafaelCarlosNatália
Relaciona a Visa à Atenção Básica (AB)NãoNãoNão. Só aborda a assistência (fortalecimento da AB, p. 8)Não. Fala em “Garantir a integralidade entre a APS e a Atenção Especializada” (objetivo 2, eixo I, p. 11) 

Pergunta-se aos candidatos e à candidata: é possível efetivar o SUS em Natal sem ter uma proposta para a Vigilância Sanitária frente aos fatos apresentados? É possível garantir direitos e promover justiça sem a Vigilância Sanitária? Como Nutricionista, pergunto: é possível a segurança alimentar sem alimentos seguros? Por que vocês esqueceram da Covisa? A quem interessa tal esquecimento?

(1) COSTA, Ediná; ROZENFELD, Suely. Constituição da Vigilância Sanitária no Brasil. In: ROZENFELD, S. (org.). Fundamentos da Vigilância Sanitária [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000. 301 p. ISBN 978-85-7541-325-8. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
(2) Definição de vigilância sanitária dada pela Lei 8080/90, art. 6º, § 1º.
(3) Foram analisados os planos de Paulinho, Rafael, Carlos e Natália.