Para além do moralismo que predomina nesses momentos, passada a comoção da morte precoce da cantora Amy Winehouse é hora de fazer uma análise da própria estrutura do entretenimento na cultura contemporânea. Uma estrutura cuja dinâmica é a de transformar as perversões privadas em virtudes públicas como fórmula do perfeito cantor de sucesso: aquele que nos faz esquecer de que, afinal, o entretenimento é uma relação mercantil.
A indústria do entretenimento parece ter um memorial padrão guardado para todos os artistas pop de sucesso. A cada morte, repetem-se os mesmos discursos resultantes da combinação de dois “plots” básicos: (a) o artista foi vítima de um “mal”, (dependência química, vida de excessos, desequilíbrio psíquico, personalidade angustiada) um arco de problemas que vai das drogas aos distúrbios de personalidade ou (b) “vítima do sucesso”: não soube lidar com a fama rápida e com as pressões comerciais da indústria fonográfica e o assédio de fãs e repórteres de tabloides sensacionalistas. E, logo depois, a família da “vítima” anuncia que criará uma fundação (que logicamente levará o nome do artista falecido) para tratamento do “mal” ao qual foi acometido o artista falecido para que não ocorra o mesmo com seus fãs enlutados.
As combinações entre (a) e (b) formam o script moralista e moralizante que parece encobrir a própria natureza do negócio: o mais fascinante para o público no artista pop parece ser o momento que esquecemos de que ele é uma mercadoria através da sua “autenticidade”, isto é, quando ele vai além do roteiro, do set list, do que era previsível. Com a recém-falecida Amy Winehouse não foi diferente.
Por exemplo, no criticado show que Amy fez no Anhembi em São Paulo no ano passado, a plateia vibrava a cada erro da cantora, quando insistentemente levava a mão ao nariz ou bebia algo de uma caneca. Celebrava-se a cantora junkie e não o talento (já conferido anteriormente através de mercadorias adquiridas ou pirateadas como DVDs e CDs).
Sadismo do público? Prazer mórbido em ver o artista se desfazendo no palco e expressando, através da sua arte, os seus dramas privados? Esse talvez seja um lado da questão, mais precisamente a resultante final de um longo processo de décadas de transformações da indústria do entretenimento.
O “nervoso formalismo”
Em um pequeno texto do pesquisador de mídia alemão Dieter Prokop intitulado “O Perfeito Cantor de Sucesso”, ele explicita uma contradição no qual se funda todos os produtos da indústria do entretenimento: de um lado o cantor que põe à venda grandezas de ordem natural como a voz e o corpo e, do outro, o peso do formalismo das estruturas-clichê:
“As cantoras adolescentes se obstinam sempre em dar ao público uma imagem da sua dinâmica, como se ela fosse realmente sua (…). Permanentemente querem provar que valem, por assim dizer, o que recebem, sendo que, conforme a vivacidade normalmente frustra-se no ato de preencher a demonstrada dinâmica com uma capacidade de sentir. É o que a agilidade formal da cultura de massa penosamente torna manifesto, como um nervoso formalismo; quando não é isso, elas confiam na sua sensualidade natural, o que as torna pesadas” (PROKOP, Dieter, “Der Perfekte Chlagerstar” In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.) Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, 1986, p. 83.)
Prokop destaca o conflito da “vivacidade” do cantor que normalmente frustra-se diante do “nervoso formalismo” da cultura de massa. Para ele, o perfeito cantor de sucesso é aquele que nos faz esquecer de que, afinal, ele é uma mercadoria projetada e calculada para o sucesso. E para nos fazer esquecer é necessário que essa vivacidade aflore de tal maneira que se torne “pesada”.
Este “nervoso formalismo” (a necessidade do clichê na cultura de massas) nada tem a ver com algo imediatamente político-ideológico (embora seus desdobramentos assim o sejam), mas é uma consequência de processos de racionalização de técnicas tipicamente industriais. Tal qual se produz parafusos ou automóveis nas linhas de montagem industriais, as produções culturais também serão subordinadas à mesma lógica. Falar em produção industrial quer dizer falar em produção de massa, produção ditada pelo imperativo do ritmo, rapidez e produção em série para que os custos se diluam ao longo do tempo. O imperativo do ritmo veloz de produção significa que a produção deve ser estandardizada, ou seja, os produtos precisam ser elaborados a partir de standards, estruturas pré‑fabricadas ou fôrmas através dos quais os componentes são montados rapidamente.
Por isso, o grande desafio da indústria do entretenimento é o de vender mercadorias como se assim não fossem. Fazer o “autêntico”, a “vivacidade” e o espontâneo desviarem a atenção do público do ato mercantil da troca. Antes de uma fria relação econômica de venda e compra, a relação entre o cantor de sucesso e as audiências deve aparentar confidencia e intimidade. Em outras palavras, injetar vida, cor e espontaneidade a estruturas ocas e repetitivas.
Mas o perfeito cantor de sucesso deve ter um tipo especial de espontaneidade: o talento de colocar alegria, brilho, boa fé, disposição e vitalidade em movimento como fossem descompromissados, sem interesses instrumentais (metas, objetivos, desempenho, eficácia etc.). Como se o cantor bastasse a si mesmo, sem necessidade acatar ordens ou cumprir metas.
Para entender esse tipo especial de espontaneidade tão procurado pela indústria do entretenimento, temos que entender a própria estrutura da produção do entretenimento na nossa sociedade.
A busca pela espontaneidade
Como descreve Neal Gabler no livro “Vida: o Filme”, as origens mais profundas do entretenimento estão nos EUA, no protestantismo evangélico cuja prática religiosa era em si bastante divertida: fiéis tomados por ataques de catalepsia, convulsões, visões, explosões de riso e cantorias, além de sermões carregados de histórias bizarras, relatos de assassinatos cruéis e deformidades para que os fiéis sentissem nos próprios ossos a esperança, convicção e culpa. Essas histórias, mais tarde massificadas em tabloides e literatura popular, seria a extensão desse fenômeno religioso tipicamente norte-americano.
Aqui, o entretenimento está associado com as sensações: o inusitado, o bizarro, o inesperado. Estas manifestações espontâneas do cotidiano estão associadas desde o início ao Fantástico, ao Mistério.
Com a entrada da fotografia, do cinema e da TV esse potencial teatral e imagético realiza-se tecnologicamente na indústria do entretenimento. Porém, com a concentração industrial e a sua organização como indústria cultural, impõem-se a necessidade de uma linguagem estandardizada para dar conta dos imperativos produtivos. A disciplina produtiva começa a entrar em choque com o espontâneo, o que coloca em risco o negócio do entretenimento.
Em busca da espontaneidade, a indústria do entretenimento logo percebeu que o star system, celebridades, pin ups, crianças e animais já não bastavam. Era necessário algo mais visceral, autêntico, arrancado do próprio psiquismo dos artistas. E as mudanças no cenário cultural apontavam para isso com o desabrochar do indivíduo na literatura norte-americana com nomes como Tennesse Williams e Allen Ginsberg. Distúrbios emocionais no seio da família em Williams e a “prosa bop espontânea” de Ginsberg com relatos de vidas errantes, personagens antenados e ao mesmo tempo místicos e a rejeição às convenções incendiaram a imaginação de jovens leitores, preparando o terreno para a contracultura que viria na década de 60.
Essas mudanças do cenário cultural fazem a indústria do entretenimento buscar o espontâneo na “autenticidade”, não mais na representação de emoções, mas nas “emoções autênticas”, “brutas”, colocando em xeque todos os paradigmas do Star System e das celebridades. Talvez o embrião dessa mudança de paradigma esteja no famoso “Método” da Actors Studio.
Criada em Nova York em 1947, a partir de uma leitura particular da teoria do ator em Stanislawsky, a Actors Studio cria a proposta de que o ator não deve apenas representar, mas ser o próprio personagem a partir de um complexo método composto por exercícios físicos e psicológicos. Para dar espírito e autenticidade às verdadeiras formas-pensamento que são os personagens, o ator deve arrancar do seu psiquismo diversas personas arquetípicas. O brilho e magnetismo revolucionários de Marlon Brando e James Dean (egressos da Actors Studio) nos anos 50 expõem uma espécie de animismo do ator: assim como no Espiritismo se chama de animismo a interferência do espírito e sentimentos do médium na comunicação (na verdade, são as personas do médium que falam e não algum espírito), vemos em filmes e teatros personagens cuja força vêm do próprio psiquismo do ator.
O resultado pode ser tanto a condição esquizofrênica do artista (a identidade se dilui na variedade de personas arquetípicas necessárias para dar vida a diferentes personagens) ou o artista que interpreta a si mesmo.
A Invasiva busca da espontaneidade
A indústria do entretenimento criou a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado, ficção e realidade. As perversões privadas se transformam em virtudes públicas. Todos os fantasmas, idiossincrasias, dilemas e tormentos da vida privada do artista são explorados como combustível para os personagens ficcionais tornarem-se “realistas” e “autênticos”.
Amy Winehouse foi mais um exemplo dessa exposição do psiquismo do artista diante público. Para além de todo o discurso moralista que emerge na mídia nesses momentos, a indústria do entretenimento necessita de vidas familiares desajustadas, personalidades esquizofrênicas, dependentes químicos, alcoólatras incorrigíveis, e demais dramas privados para dar “espontaneidade” às estruturas-clichê vazias. Dar a ilusão de movimento, novidade.
Assim como no filme “Cisne Negro” (Black Swan, 2010) onde o diretor artístico Leroy incita a esquizofrenia da prima bailarina Nina para arrancar do seu psiquismo a vida necessária ao personagem do balé Lago dos Cisnes, certamente os executivos e produtores não só viam com bons olhos o involuntário circo midiático de Amy, mas também estimulavam ou, simplesmente, soltavam a corda para que ela vivesse as letras das músicas que “interpretava” (ou, melhor dizendo, vivia).
Fascinado, o público assistia ao drama privado da cantora por acreditar estar numa relação de confidencia e intimidade. Portanto, se a tese de Dieter Prokop estiver correta, Amy Winehouse foi a perfeita cantora de sucesso: nos fez esquecer as bases mercantis em que se fundamentam o entretenimento.
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