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OUTRAS FORMAS DE VIDA: O QUE FAZER COM AS CATÁSTROFES?

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Por Rafael Santos (graduando em Ciências Sociais – UFRN)

Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham tanto medo disso quanto nós! Davi Kopenawa

Nos últimos dias, o Estado do Rio Grande do Sul vem sendo assolado por chuvas intensas, superando recordes históricos ocasionando perdas irreversíveis como vidas humanas, são dezenas de mortos e desaparecidos. Além da incomensurabilidade de estimar a vida humana, outros fatores são postos em jogo como o rompimento de estradas, submersão de pontes, destruição de plantações e inviabilização para o transporte de insumos, alimentos, etc. Ao mesmo tempo, o sul da China também sofre com chuvas intensas, no último dia 30 de abril (quarta-feira) uma rodovia desmoronou deixando 19 mortos e 30 feridos devido a uma enchente em níveis que não estavam previstos. Nas últimas semanas, devido a um longo período de escassez de chuvas na região de Nueva Ecija, no norte das Filipinas, acabou-se “revelando” uma cidade (as ruínas) que estava submersa em uma barragem; os moradores locais que dependem da pesca e da agricultura agora fazem “bico” de guia turístico. Em março deste ano o Rio de Janeiro bateu recordes de temperatura, a prefeitura da capital do Estado estimou 62,3º de sensação térmica no dia 17 de março pela manhã. Por que mencionar diferentes fenômenos em diferentes lugares do planeta em um intervalo curto de tempo? Ora, porque só pode se tratar de uma coisa, de que as mudanças climáticas não são efeitos contingentes, aleatórios ou imprevisíveis – acredite, os alertas não são de hoje.

Em alguns casos, a mudança brusca no clima acaba favorecendo populações locais. É o caso recente no interior do Rio Grande do Norte, quando Barragem de Oiticica atingiu 100% da sua capacidade. Mas nem sempre é assim, ou melhor, nem sempre são os desfavorecidos que ganham com esses eventos. A realidade é que há um despreparo assustador por parte dos nossos representantes para lidar com os efeitos das mudanças climáticas; não nos esqueçamos que a BR-304, uma via de acesso que liga Natal a Mossoró está há quase 1 mês interditada depois que parte do trajeto foi rompido devido as fortes chuvas na região. No sul do país, que agora sofre com inundações em níveis catastróficos, deputados do estado do Rio Grande do Sul e vereadores de Porto Alegre há tempos atrás queriam derrubar o muro de Mauá, uma instalação que protege a capital caso o Rio Guaíba transborde – até então é este muro construído há mais ou menos 50 anos que protege a capital do “empreendedorismo e inovação” de ser inundada.

A displicência do poder público somada a uma crise que, a rigor, não é natural por si só, tem como consequência a transferência dos danos para os mais pobres e desfavorecidos nas áreas que são afetadas. Como a mudança climática se tornou uma pauta do cotidiano nos últimos anos, acredito que devemos colocar um pouco nosso olhar não só sobre seus efeitos, mas de analisar esta questão pela raiz. O primeiro exercício para isso seria então olhar para essas crises não como um evento, mas como um processo, este processo que é lento, gradual e que se iniciou há bastante tempo. E é preciso antecipar que a crise climática não se trata de um desconhecido que veio de fora e assolou a nós, os “terranos” – para usar a expressão do sociólogo e antropólogo Bruno Latour.

            Hoje falamos em racismo ambiental porque mensuramos que os efeitos das mudanças climáticas recaem sobretudo em populações pobres, periféricas e em sua maioria negras. Também falamos em negacionismo, ou melhor, climacetismo para habitualmente referirmos a políticas públicas ou lideranças governamentais que secundarizam questões climáticas ou tendem a tratar como uma “conspiração globalista”, como vem sendo a retórica em grupos de extrema-direita. No entanto, o necessário aqui é ir além de analisar os efeitos da crise, é preciso traçar uma genealogia. Do ponto de vista das ciências humanas, acredito que nosso papel diante do desastre ecológico é desnaturalizá-lo. Em Jamais Fomos Modernos, obra seminal de Bruno Latour, vemos que nós temos uma metafísica – uma forma de compreender o mundo – muito particular, segundo Latour, é aquela que constrói uma muralha entre Natureza e Cultura. Nós, modernos, concebemos como sacrilégio atravessar tal muralha sem a devida “purificação”: não podemos jamais, de forma alguma, falar de natureza com uma “terminologia social” (vice-versa), não podemos falar que as ondas de calor provocadas por buracos na camada de ozônio são efeitos da emissão de CO2, quer dizer, não podemos falar que o Natural (onda de calor, fenômeno da natureza) possui um fundo social (formas de produção; modos de vida). Mas com as catástrofes que assolam o século XXI, fica claro que esta muralha está caindo aos pedaços! Se tornou nebuloso distinguir quem está determinando quem, mas de uma coisa sabemos, que a crise climática nada tem de natural – pelo menos não inteiramente. Demoramos muito para entender que esta distinção entre Natureza e Cultura não fazia sentido algum. Embora alguns nomes já houvessem nos alertado ainda no século XX, como o crítico cultural Guy Debord já nos dizia em 1971 (enquanto a esquerda sonhava em tomar para si o mesmo aparato que destruía o planeta), “quando chove, quando há nuvens sobre Paris, não esqueçam nunca que isso é responsabilidade do governo. A produção industrial alienada faz chover”.

            Bruno Latour compreendeu que a irrupção dessas sucessivas crises ambientais possui um nome e uma causa: o antropoceno. Este conceito se popularizou nos anos 2000 através do químico neerlandês e vencedor do prêmio Nobel, Paul Crutzen, que ao estudar a decomposição do ozônio na atmosfera chegou a conclusão de que nós, humanos, tínhamos um peso circunstancial neste efeito. Tal conceito representa a passagem da era geológica do holoceno – que corresponde ao fim da era glacial e se direciona para uma estabilização ecológica – para uma era geológica onde o humano teria se transformado em uma força geofísica, quer dizer, que nós temos a capacidade de determinar o curso do planeta; estamos então no tempo do humano geologicamente falando. Nós somos o predicado das catástrofes, segundo esses autores. No entanto, o conceito é ainda palco de controvérsias. Após anos de discussão na Comissão Internacional de Estratigrafia da União Internacional de Ciências Geológicas, uma votação recente entre os especialistas da comissão chegou à conclusão de que ainda estamos no holoceno. O resultado não foi unânime e produziu um “racha” entre geólogos no mundo inteiro.

Mas o fato é que estamos vivenciando os efeitos de nossas ações em larga escala; é o preço a se pagar pela extração de combustíveis fósseis; pela emissão de CO2; pelo descarte de resíduos industriais nos oceanos; pelo desmatamento de zonas florestais. Tudo isso estaria sendo “pago”, e nós não temos saldo algum para ressarcir esta dívida e a taxa de juros é mais alta que a do Brasil! Isabelle Stengers é quem introduziu este movimento de acertos de conta com a Terra pela noção de Intrusão de Gaia, que em poucas palavras significa dizer que a Terra passa a se tornar um agente político. Entender as crises ambientais a partir de uma filosofia e uma metafísica ecológica não é apenas retórica acadêmica, pelo contrário, é um esforço em traduzir estes fenômenos relacionando-os com estudos sérios que ocorreram na área da geologia, ecologia, biologia, história e demais áreas do conhecimento, um esforço para deixar de tratarmos essas catástrofes como algo contingente, é uma tentativa em mostrar que esses fenômenos possuem um sentido que pode ser apreendido em nível planetário. Falar que a Terra se tornou um agente político não é apenas alarmismo ou abstração demasiada, mas também um esforço em sensibilizar aqueles que estão à deriva em meio a todos esses eventos; é também uma forma de trazer este debate de forma séria para a esfera pública. Certo dia me deparei com uma cena do Jornal O Globo que “orientava” os cidadãos ao que fazer durante uma grande onda de calor, orientações sobre como passar protetor solar em determinados horários, se manter hidratado, etc., mas em momento algum houve espaço deliberação, para falarmos sobre políticas públicas para estes eventos.

            A forma com que a esfera pública se apresenta se assemelha muito a uma maneira de reduzir os danos causados por estes eventos, “escondendo” – às vezes conscientemente – a profundidade da questão. A tão famosa frase “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, que nos círculos da nova esquerda acabou se tornando um slogan, nos atualiza um pouco sobre o diagnóstico do tempo presente quando conjugamos a crise ecológica e a forma com que lidamos com ela. De fato, é realmente mais fácil imaginar o fim do mundo. O gênero de produção de ficção científica está cheio de representações onde um grande evento destrói a vida na terra; a série recém-lançada na plataforma de streaming da Amazon, Fallout, dirigida por Jonathan Nolan e Todd Howard,representa literalmente um mundo acabado em que o capitalismo ainda persiste. Mas devemos sair da fabulação e da ficção e voltar ao real. Existem – por enquanto – sociedades em que o mundo já acabou.

Para o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o mundo dos povos ameríndios acabou quando os colonizadores chegaram em nosso continente no século XV, agora esses povos estão vivendo no que sobrou dele. Os yanomani evitam que o mundo acabe através dos sonhos, quando “seguram” a queda do céu sobre a terra. Não devemos “viver como indígena”, mas pensar com ele. O que os povos amazônicos fizeram a partir do século XV foi ficar com problema buscando outras fontes de resistência A crise climática ainda está apenas no começo, reverter séculos de danos não se dará do dia para a noite. Ficar com o problema não é uma relação de passividade, ao contrário, é um imperativo a buscar outras formas de se relacionar com a terra, é preciso sair do individualismo e do excepcionalismo humano e aprender com outras formas de vida. É também um apelo às instituições representativas, além de combater a displicência e o negacionismo – ora velado, ora explícito – com as mudanças climáticas, para buscar respostas positivas e não apenas reativas aos eventos que assolam seus territórios. É preciso imaginar e construir, é preciso ter a convicção de que outro mundo é possível.