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“Capitão Fantástico” é uma crítica à escolarização 

Giovanna Mantuano é mestre em ensino, educadora e socióloga

“Capitão Fantástico” é também uma crítica às instituições: a família, a escola, a igreja, o trabalho, o Estado. A centralidade da crítica é ao funcionamento da sociedade do capital, que fomenta o medo e a ignorância em seu verdadeiro cativeiro moral e espiritual. Estamos falando de um filme escrito e dirigido por Matt Ross, uma produção estadunidense (2016), ambientada no deserto de Washington, que conta a história de uma família que vive isolada da vida urbana e se vê forçada, após o falecimento da mãe Leslie, a se reintegrar à sociedade. A ida da família ao velório é marcada por um choque de realidade causado pelas diferenças de valores da família Cash e da sociedade americana urbana.

O filme é uma crítica às instituições, sobretudo a educacional. Seguindo nessa ideia, Ben (o pai) dedica sua vida a oferecer uma educação longe do perfil tradicional de escola. Transforma os seis filhos em crianças excepcionalmente letradas e “cultas”, com conhecimentos avançados por meio da caça, luta, práticas de meditação, música e os conhecimentos das disciplinas básicas, como a literatura, línguas estrangeiras, biologia, política e física. É através do projeto próprio de educação da família que Cash não institucionaliza os filhos, educando-os longe da convencional sociedade americana de valores firmados no falso moralismo, hipocrisia, consumo, relações de poder, medo e ignorância moral.

“Querida mamãe, não precisa mais vir me buscar. Queime a outra a carta. O que eu e Ben criamos aqui pode ser único na existência humana. Criamos um paraíso a partir de A República, de Platão. Nossos filhos serão reis filósofos. Isso me deixa indescritivelmente feliz (…)” – Fragmentos da carta de Leslie à sua mãe.

O “Paraíso de Platão” a que Leslie se refere, é um processo educacional experimental sujeito a erros, com o perigo de trilhar caminhos equivocados, sobretudo quando se trata dos valores morais e o método próprio de educação. A todo momento somos surpreendidos com atitudes chocantes, e por vezes extraordinárias. Dentre outros, o autor nos convida à reflexão dos valores priorizados na sociedade do consumo; os dilemas entre idealismo e realidade; e o tema principal, a educação e seu propósito. É nesse sentido que a trama põe em cheque o sistema capitalista, mostrando seus equívocos, sua inércia moral e apatia intelectual. 

Por outro lado, o projeto da família Cash por vezes se mostra ingênuo, e em algum momento do filme, a sensação que nos dá é que os dois projetos de educação fracassaram (o projeto educacional de Cash e a educação institucional formal), deixando o espectador com sentimentos conflitantes entre o idealismo utópico do projeto de Ben e a realidade escolar posta a que todos nós estamos habituados. O fato é que a sociedade hiper escolarizada, com valores educacionais de e para o mercado, deposita grandes expectativas no diploma, nas boas notas, nos vestibulares, confundindo o aprender com escolarização. É neste sentido, que a crítica que pode ser feita é que uma organização social quando não é financiada por aqueles que estão no poder, é tida como uma forma de agressão moral ou subversão político-social.

Estamos acostumados com uma educação economicamente determinada: quando se tira o financiamento de uma instituição, ela para de funcionar. Trata-se de um sistema que só fomenta a manutenção de privilégios: quanto maior o investimento ou quanto maior a conta bancária do estudante, maiores são as oportunidades educacionais. Isso vale para as crianças tanto na escola, como fora delas. (Ver a crítica de Ivan Illich ao sistema de ensino em “Sociedade Sem Escolas”).

O filme é categórico ao mostrar que o ethos escolarizado desconsidera uma educação universal. Todas as nossas disciplinas escolares, baseiam-se em concepções de mundo estática, numa dialética de polaridade. Sem falar na hiperespecialização científica, de pouco ou nada harmonia criativa. Concordamos com Illich e com o filme, quando estes advogam por uma educação universal e problematizam a institucionalização de valores que definem pobreza pelo poder de consumo. Onde as necessidades básicas são transformadas em mercadoria, lembrando Marx. 

O filme faz pensar não só quanto à estruturação do currículo escolar, mas questiona sobre quem está melhor adaptado à realidade que o cerca. Enquanto seus primos inseridos na realidade urbana patinam em uma realidade apática e prosaica, os filhos de Ben e Leslie estão totalmente integrados entre si e fica claro o poder unitivo de coesão familiar, uma vez que estão todos ligados por uma moral comum. 

A escola enquanto paradigma fracassa ao transmitir apenas os valores do capital, estudar, ser um bom aluno, tirar boas notas para a inserção no mercado de trabalho; desta feita, ela forma seres socialmente impotentes. Uma impotência social, moral, política e generalizada, formando indivíduos incapazes de lidar com os próprios problemas de ordem coletiva e existencial.

A pergunta que paira é se as instituições, sobretudo as educacionais, se estas são realmente insubstituíveis, irrevogáveis, intransferivelmente necessárias e funcionais como se imagina. Diferentemente de comentários ingênuos que acham que a narrativa apenas diz respeito ao tema da socialização primária e secundária, Matt Ross vai fundo e não deixa barato quanto a crítica a escola, a sociedade, ao sistema dominante e também ao processo de socialização. Ele escancara nossa impotência perante à burocracia e o aparelhamento estatal, mostrando na figura de Ben, dos seis filhos e seu sistema educacional, um antídoto contra toda forma de arregimentação e conformismo social. 

Hoje não é dia sete de dezembro – como festeja a família Cash, mas, inspirados pelo filme, todo dia é dia de comemorar o fascinante Chomsky day! Viva Chomsky!