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Relógios de afetos

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Todos os dias se acorda às seis horas da manhã, porém, não faz tudo igual. Ela sempre toma seu chá às sete horas, sempre toma banho em seguida, no riacho em frente à sua casa. Em seguida, põe-se a preparar o café da manhã de seus amados netos, os quais não podem acordar depois das oito, porque têm de ir à escola.

Embora o horário de aula se inicie às sete horas, Vó Imba sempre achou um castigo acordar seus netinhos antes das sete e meia, para fazer sabe-se lá o que na escola. Sem ceticismo, ainda que tímido, esta prática era ecompartilhada com seus vizinhos, ainda que muito desagradasse aos docentes. Estes quebravam um ciclo de entendimento que tinha o despertar junto com a autora do dia como referência de vigor.

Depois de seus netinhos irem à escola, já em hora avançada, Imba se punha a debulhar feijão verde, juntamente com Linda e Selma. Elas faziam este ritual todo santo dia, desde que fosse regado a fofocas. Ainda que fossem bobas fofocas, sem elas não conseguiam debulhar uma vagem sequer; tinham de tomar seu elixir da juventude!

Seus netos chegavam na hora de assistir ao desenho Dragon Ball Z – que era a alegria dos quatro desgarrados. Vó Imba, com muito carinho, e de seu jeito, preparava a refeição com muito amor, pois, aquela era a hora do afeto. Não que ela derramasse abraços ou que despejasse beijos; eles apenas faziam uma refeição, que, embora muito simples, era temperada por afeto.

Seus netinhos comiam a refeição do dia como se fosse a última. A cada mastigar, eles esqueciam da pesarosa e tediosa manhã que o ambiente escolar lhes proporcionava.

— O que a professora passou hoje? — perguntava Vó Imba, em uma tentativa de prender a atenção de seus netos, que nada mais queriam senão assistir ao último desenho da TV Globinho, que era Dragon Ball Z. Todos os netos, silenciosamente, amargavam o constrangimento pessoal de ficar com raiva de Vó Imba, mesmo que soubessem que aquela era a hora de seu afeto, pois ela não os deixava sair da mesa antes de terminar o almoço,

Aquele era o momento do dia mais esperado por Vó Imba, e nenhum neto ousaria estragá-lo, ainda que isso significasse perder metade do desenho amado por todos eles.

Após o almoço, que era, comumente, engolido com suco de cajá ou com refresco em pó, os netinhos de Vó Imba, finalmente, poderiam assistir ao final de seu desenho favorito.

Como de costume, entre os indivíduos do sertão agrestino, a hora da sesta só era interrompido com o Vale a Pena Ver de Novo. Os netinhos, divididos em dois pares, punham-se a nada fazer, senão amenidades. Os dois rapazes soltavam “ratinhos” – uma corruptela das pipas – e as moças assistam a algum programa de receita de comida.

Vó Imba levantava-se de seu sofá, habitualmente, depois da novela da tarde. Era a hora de encontrar sua filha e vender produtos cosméticos de casa em casa. Para ela, tratava-se de uma diversão travestida de trabalho; para sua filha, era a fonte do sustento de sua família.

Os netinhos de Imba eram de seu filho mais velho.

Após a incursão na cidade, tentando vender os produtos de sua filha, Imba voltava para casa. Ainda que deixasse as responsabilidades domésticas ao cargo de sua netinha mais velha, tentava sempre chegar em casa antes das dezoito horas. Pois, além da novela, que passava naquele horária, era o momento de seu ritual de afeto: preparar o jantar de seus netinhos.

Há quem diga que Imba era explorada pela vida e por seus netos. Talvez isto fosse verdade, assim como também era verdade que ela não sabia comunicar afeto senão através do preparo do alimento de seus queridos.

Quando cresceram, seus netinhos, que moravam em um lugarejo chamado Bancos, tomaram, cada um, rumos diferentes. Ninha foi morar perto do mar, Leleca foi para a capital do Rio Grande do Norte, José foi morar com sua mãe e Ninho ganhou o mundo.

Ainda que os irmãos mal se falessem, e só se vissem a cada cinco anos, todos eles carregavam consigo seus relógios de afetos. Foi Leleca quem teve a ideia, por ocasião do velório de Vó Imba, de pedir que ao carpinteiro de Bancos que fizesse quatro relógios pequenos de madeira, os quais deveriam ser talhados com a frase meio dia é a hora do almoço e do afeto.