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Por Robson Fernando de Souza
Aceito o desafio, vindo de mim mesmo, de continuar um debate que começou carente de respeitabilidade, dada a virulência mortificista do texto que começou toda a polêmica sobre a “necessidade” de exterminar os gatos de rua. O autor daquele artigo, denominado “Morte aos gatos!”, replicou, de forma tentativamente mais respeitosa do que em sua primeira obra, às objeções sobre o controle de zoonoses baseado no ato de matar animais domésticos de rua, observando cada aspecto envolvido na questão. E, como representante do lado que defende a paz entre gatos e seres humanos, treplico-o, novamente percebendo falhas argumentativas que comprometem a lógica da ideia defendida por ele.
Assim como o outro lado, comento cada aspecto do ideário ali defendido.
Sacrifício em massa, controle populacional e a suposta não referência ao extermínio
Percebe-se que o autor tenta defender a moralidade do ato de exterminar animais de rua em nome da saúde humana baseando-se no (suposto) fato de que outras cidades ao redor do mundo também o fariam. No que se pode perceber de como ele se apega a isso para defender sua crença, vemos uma dupla falácia geográfica, a consistir na combinação de dois vícios lógicos:
a) Variante geográfica do apelo à multidão: O apelo à multidão afirma que algo seria bom, verdadeiro e aceitável porque uma grande quantidade de pessoas pratica ou crê nesse algo. Sua variante geográfica, usada no argumento pró-sacrifício, se baseia na ilógica premissa de que, se uma ação é praticada em muitas cidades ou regiões, ela é aceitável, boa e/ou verdadeira – no caso do “Morte aos gatos!” e da réplica que o sucedeu, a crença é de que, já que é praticado em muitas cidades do mundo, o extermínio estatal de animais de rua seria correto e ético por isso.
b) Variante geográfica do apelo à riqueza: O apelo à riqueza, por sua vez, argumenta que uma pessoa tem razão em determinada ideia simplesmente porque é rica, detentora de prestígio socioeconômico e de bens materiais valiosos. No caso da defesa da matança de gatos, usa-se uma variante também geográfica dessa falácia: segundo o autor, se o extermínio de gatos pelo Estado é promovido por cidades grandes e economicamente desenvolvidas (nos exemplos dele, importantes cidades americanas, francesas, inglesas e chilenas), é portanto automaticamente ético e aceitável.
Em seguida, fala que não usou em nenhum momento a palavra extermínio. Ele não usou, mas não é necessário explicitar uma determinada palavra para que a ideia denominada por ela seja defendida. Exterminar, segundo o Dicionário Aurélio, significa “destruir com mortandade; fazer desaparecer; eliminar matando; aniquilar”. E é isso o que a política do controle mortífero de zoonoses de fato faz com os animais de rua: destrói-os com mortandade, os faz desaparecer, elimina-os com a morte (violenta, por sinal), aniquila-os.
Não é preciso muito esforço para se perceber que, desde o sugestivíssimo título, o texto “Morte aos gatos!” defende sim o extermínio como forma de deter doenças de origem animal, ainda que não cite a infame palavra. Não é por seus objetivos, intenções e métodos que uma política de matança deixa de ser considerada uma forma de extermínio.
Ainda na seção em que ele se explica sobre a defesa da política mortífera, o autor afirma que, se não houver uma política de matança (o que ele fala com outras palavras, bem sutis aliás) por parte do Estado, os governados é que levarão a cabo tal política. Acaba-se aí incidindo numa falsa dicotomia – ou o Estado mata ou as pessoas matarão, supostamente não havendo terceiras opções ou formas de evitar as duas ações –, ignorando ou subestimando a existência da alternativa de controle populacional baseada em esterilização, adoção e educação pela guarda responsável.
Parece-lhe incabível tanto que a polícia proteja os animais de rua dos criminosos que os querem mortos, e eles sejam protegidos de violências seja lá por parte de quem for, como que o Estado seja civilizado o bastante em sua relação com os animais não humanos para buscar alternativas não violentas de controle populacional.
E, no final, ele fala que isso é uma questão de saúde pública. Acontece, porém, que, quando se defende a matança de seres sencientes inocentes que podem ser tratados de formas não violentas, isso deixa de ser um problema estritamente de saúde e passa a ser uma grave questão de Ética.
A toxoplasmose
O autor tenta se redimir da falta de dados estatísticos que comprovassem que os gatos seriam os grandes culpados pelas epidemias de toxoplasmose em épocas recentes. Mostra então, indiretamente, a opinião de um infectologista entrevistado em 2010 pelo jornal potiguar Correio da Tarde, a qual transcrevo abaixo:
“Segundo o infectologista e professor da UFRN, Kleber Luz, a toxoplasmose pode ser transmitida de forma adquirida ou congênita, sobressaindo três formas de contágio. ‘Pode ser pela ingestão de carne crua ou mal cozida de animais parasitados contendo cistos teciduais, especialmente do porco, do boi e do carneiro; pela ingestão de alimentos ou água contaminados pelas fezes de felinos, sobretudo de gatos[;] ou por transmissão direta’, explica. Em mulheres grávidas a doença pode ser mais grave. Na congênita, quando é transmitida durante o período de gestação, e o feto consegue sobreviver, pode provocar diversas complicações como hidrocefalia, retardo mental, lesões da pele, microencefalia e disfunções hepáticas.”
Deduz-se que o autor do “Morte aos gatos!” interpretou a referência acima à transmissão direta como o grande indício de que gatos transmitiriam diretamente, pelo simples contato com seres humanos, a toxoplasmose. Mas não é isso o que se percebe. Nada no texto afirma que o contato com gatos traria o risco de se contrair a doença. Pelo contrário, é perceptível que a “transmissão direta” se trata não da relação entre humanos e gatos, mas sim da contaminação congênita de filhos de portadoras da enfermidade – o que é inclusive confirmado por artigo científico de Maria Bernadete de Paula Eduardo e equipe, publicado em maio de 2007 na revista Boletim Epidemiológico Paulista.
Ele põe no mesmo parágrafo:
“Conversei com veterinários, médicos e biólogos e todos foram unânimes em dizer, ao contrário do que foi afirmado por alguns comentaristas do site, que locais em que há muitos gatos, cria-se, sim, ambiente propício para a difusão da toxoplasmose.”
E também:
“O contato com o gato, ou o uso comum dos ambientes/utensílios pode também levar ao alastramento da doença. Um biólogo […], que fez graduação e mestrado na UFRN, lembrou o que é comumente visto pelos alunos daquela instituição: gatos dividindo bebedouros com alunos e professores (água contaminada também representa uma forma de contágio).”
Nisso ele falta com a factualidade científica – e com a verdade, no final das contas –, porque não há evidências científicas de tal forma de contágio da toxoplasmose. Os oocistos do Toxoplasma Gondii não se transmitem por via aérea, cutânea ou salivar (gatos lambendo bicos de bebedouros), mas sim por via oral – quando se come carne de animais infectados ou se bebe água contaminada com fezes de gatos portadores. Os bebedouros só poderiam transmitir a enfermidade se a água já viesse contaminada com cocô de gato desde sua fonte.
Ou seja, se um local muito populoso de gatos é um potencial foco de toxoplasmose, é porque provavelmente os felinos defecam na roça em que os vegetais de consumo local são plantados e/ou na fonte d’água de onde os moradores humanos obtêm a água para beber ou lavar as plantas a serem comidas.
Mais detalhes sobre a incubação do Toxoplasma Gondii no organismo dos gatos, segundo Maria Bernadete de Paula Eduardo e equipe:
Existem três estágios principais de desenvolvimento do parasita: taquizoítos, bradizoítos e esporozoítos. Os taquizoítos são organismos de rápida multiplicação da infecção aguda, também chamados de formas proliferativas e trofozoítos. Os bradizoítos são organismos de multiplicação lenta ou de repouso nos cistos do toxoplasma e se desenvolvem durante a infecção crônica no cérebro, na retina, no músculo esquelético e cardíaco e em outras partes. Os esporozoítos desenvolvem-se nos esporocistos dentro dos oocistos que são eliminados pelas fezes dos gatos e, por via oral, são altamente infectantes para os mamíferos, as aves e o [ser humano]. Após a ingestão pelo gato de tecidos contendo oocistos ou cistos, estes são liberados no organismo e penetram no epitélio intestinal, onde sofrem reprodução assexuada, seguida de reprodução sexuada, se transformando em oocistos que podem ser excretados junto com as fezes. Os oocistos não esporulados necessitam de 1 a 5 dias para se esporularem no ambiente, tornado-se infectivos. Os gatos são considerados hospedeiros completos, pois apresentam o ciclo extra-intestinal ou tecidual, composto por taquizoítos em grupos e bradizoítos em cistos. Os [humanos], os mamíferos não felinos e os pássaros são hospedeiros intermediários ou incompletos, nos quais ocorre apenas o ciclo tecidual extra-intestinal.
Alimentação de animais de rua
O autor sugeriu também que fosse criminalizada a alimentação de animais de rua, sob o pretexto do desequilíbrio ambiental causado por eles em determinadas áreas de cidades como Natal. Mas aí fica uma dúvida: se as pessoas não os alimentarem, como esses animais irão viver?
Aliás, a resposta a essa dúvida acarreta que o próprio autor dá um tiro no pé quando faz tal sugestão. Porque, sem alimentos fornecidos pelas pessoas, os gatos irão, mais do que nunca, recorrer à predação dos passarinhos, dos tijuaçus e de outras potenciais presas. Se já matam tais animais mesmo sendo alimentados, os gatos de rua iriam fazê-lo muito mais ainda em caso de fome, de falta de alimentação vinda de mãos humanas. Afinal, eles irão querer sobreviver, não aceitarão se entregar e morrer de fome por causa de uma lei a proibir que recebam comida dos humanos.
O especismo e o controle de zoonoses
Ele tenta, no texto e nas respostas a comentários e ao meu texto-resposta, se redimir do fato de que arrogou uma superioridade moral para o ser humano. Mas, se para ele “o homem [sic] é mais importante do que o animal não humano”, por que ele sustenta essa crença, senão pela convicção de que os interesses e a dignidade moral dos animais não humanos seriam inferiores aos dos seres humanos? O que o faz achar que uma desigualdade de importâncias (por exemplo, a vida do ser humano ser mais “importante” e digna do que a de um outro animal) não seria uma desigualdade de consideração moral?
Adiante, na segunda metade do parágrafo em que ele tenta se defender da acusação de especista, ele diz:
“Ora, a política de controle de zoonose também parte dessa premissa para pensar a população de animais. Até porque, sem o controle, a transmissão de doenças ocorre sim. E, em determinados casos, o sacrifício se faz necessário (qual o absurdo nisso tudo?).”
Nisso ele acaba incidindo na falácia do espantalho, que consiste em imputar ao outro lado um falso argumento criticável que na verdade não foi manifestado. Porque nenhum defensor dos animais é contra a existência de uma política de controle de zoonoses e de populações de animais de rua. O que somos contra é a política do extermínio, de lhes negar o básico direito à vida quando alternativas saudáveis e éticas são totalmente possíveis. Existem políticas antizoonóticas pacíficas e éticas, como se vê abaixo.
A política ética para o controle das zoonoses e das populações de animais errantes
O autor acaba incidindo no equívoco de pensar que a adoção de gatos, por hoje ser baixa em comparação à de cães, será baixa para sempre. Isso não é nada que uma campanha permanente e bem elaborada de estímulo à adoção de gatos (e de cães também) não possa reverter – e, a saber, já existe em Natal uma política municipal a promover esse incentivo, inclusive prevista em lei.
A eutanásia, por sua vez, só se faz necessária quando o animal está sofrendo irreversível e intratavelmente. Porque, nesse caso, é a única maneira de acabar com sua agonia. Doenças altamente contagiosas poderiam ser lidadas com o isolamento, definitivo ou não, dos animais doentes em quarentenas e o devido tratamento – considerando que o Estado seja ético o bastante para reconhecer os tratamentos existentes para doenças do tipo como a leishmaniose visceral (também conhecida como calazar). Afinal, não há por que não se considerar cães e gatos (e todos os demais animais) sujeitos de direito, dignos do sagrado direito à vida, pela qual o Estado idealmente deveria zelar.
E a seguir ele escreve:
“É preciso pensar ainda com a cabeça do administrador público. O centro de zoonose não recebe grande quantidade de recursos. Até porque a prefeitura prefere investir em outras áreas, o que dificulta ainda mais a conjugação de todas essas ações.”
Uma política pública dirigida à integridade dos animais não humanos e liberta do especismo – o qual pessoas como o autor do “Morte aos gatos!” carrega – poderá reverter essa situação. Não é porque um centro de controle de zoonoses recebe hoje pouca verba que assim deva ser para sempre, que a solução seja exterminar para economizar dinheiro – crença que não corresponde à realidade, considerando-se também que o extermínio acaba saindo financeiramente mais caro do que o controle por esterilização, chipagem e incentivo à adoção e à tutela responsável de animais.
Outros assuntos (“fundamentalismo”, vegetarianismo, testes em animais etc.)
Me abstenho de responder diretamente a essas partes. O tema a ser tratado no debate é especificamente como fazer o controle de zoonoses, se por extermínio ou por esterilização, chipagem e campanhas de adoção e guarda responsável. Temas como vegetarianismo e testes in vivo deverão ser tratados em textos à parte, que desde já me disponho a responder caso sejam publicados.
Sobre a reação irracional dos mais revoltados: minha posição
A indignação quase generalizada daquelas pessoas que respeitam os animais não humanos, eu incluído, é parcialmente justificável, visto que o artigo “Morte aos gatos!” usou, desde o seu título, de uma linguagem muito polemista, mordaz e provocativa, como se visasse não abrir um debate cordial e proveitoso, mas sim meramente semear a fúria dos considerados “politicamente corretos” e sacudir a bandeira de “politicamente incorreto com orgulho”, a mesma ostentada pelos Rafinhas e Narlochs da vida.
Digo “parcialmente justificável” porque parte das demonstrações de contrariedade ali vistas realmente não encontram embasamento racional e mesmo ético. Ofensas, ameaças e diversas outras formas de expressar revolta na base da baixaria e da irracionalidade não são razoáveis para nenhuma ocasião. Acabam os partidários desse ódio reativo se rebaixando ao nível de quem os provoca, ou mesmo tornando-se ainda mais baixos do que seus provocadores.
Em outras palavras, uma pessoa que ameaça de morte ou injuria com virulenta violência verbal um especista assumido não é mais ética do que o ofendido. Pelo contrário até: ela se torna oficialmente uma criminosa antiética, podendo ser denunciada às autoridades judiciais ou policiais, com toda razão, por injúria (Artigo 140 do Código Penal) e/ou ameaça (Artigo 147 do CP).
Não é com insultos e manifestações de disposição para ferir ou matar que a sociedade vai se tornar mais ética e os “politicamente incorretos” serão argumentativamente desacreditados. Isso, aliás, acaba deixando parecer que os defensores dos animais são pessoas histéricas e descontroladas, que se dispõem a agredir e intimidar para fazerem valer os Direitos Animais. Está sendo trabalhoso para a militância animalista se livrar desse estereótipo, mas infelizmente muitas pessoas – que muitas vezes não são os conservadores – acabam atrapalhando seriamente esse esforço racionalizante.
Desde já eu afirmo que não incitei qualquer ameaça ou injúria. Me restringi a convocar protestos, dada a forma revoltante com que o artigo “Morte aos gatos!” foi escrito, e me calquei na premissa, que infelizmente acabou não correspondendo à realidade, de que as manifestações de repúdio seriam geralmente comedidas e observantes à justiça. Ter descoberto que a revolta acabou parcialmente saindo da pretensão esperada me fez acrescentar a observação para que se evitassem manifestações irracionais e odientas.
Novamente demonstro minha reprovação às formas irracionais de se “defender” os animais, baseadas nas injúrias, nas ameaças, na imposição do medo, na revolta bestializada e irracional. Não é com tais métodos que os animais serão libertados da escravidão a que hoje são submetidos. Pelo contrário, a Razão e a Educação serão instrumentos sagrados para tanto.
Considerações finais
Dessa vez o autor do texto “Morte aos gatos” demonstrou realmente a intenção de argumentar respeitosamente – muito embora sua linha de raciocínio não respeite o direito dos gatos à vida nem os reconheça como sujeitos morais que podem ter sua convivência com os humanos harmonizada e libertada de doenças. Ainda assim, ele incidiu em falhas argumentativas que esta tréplica se dedicou a desvelar.
Vislumbro aqui que a opinião defensora da velha política de sacrifícios é algo cada vez mais minoritário e residual, que vem sendo abandonado e substituído pelo zelo a todas as formas de vida senciente, incluídas a humana, a felina, a canina e todas as demais. É possível controlar, ou mesmo zerar, com paz a população de animais errantes, e isso passará obrigatoriamente pela superação do pensamento tradicional de que a vida animal não humana é algo descartável e menos importante do que a humana.
Manter-se em guerra contra os cães e gatos abandonados não resolverá nenhuma zoonose. Só irá enxugar gelo e manter o ser humano em um estado de bruteza e cegueira ética, no qual não se reconhece que a violência do tratamento da vida animal como coisa descartável, seja pela mercantilização de animais domésticos, seja pelo extermínio dos errantes, é a grande e fundamental causa da origem e perpetuação das zoonoses que afligem o ser humano.
E termino com uma mensagem: o especismo deve sempre ser criticado e ter seus vícios argumentativos desmontados. E isso deve ser feito do alto da racionalidade humana e do respeito aos seres sencientes. Não com baixaria e violência verbal.