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A geografia do meu coração

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Santa Maria, que foi preterida na toponímia do folclorista fascista, é um lugar no meio do caminho. Até pouco tempo, mal se sabia exatamente onde ela era localizada, apesar de ser passagem inevitável para todos que pretendem ir a Mossoró, atravessando a BR 304.

Esse lugarzinho, que foi considerado indigno de uma cartografia até pouco tempo, é onde mora meu coração. Às vezes falamos das paisagens para nos referir às pessoas, eu, hoje, porém, quero rememorar Santa Maria em todo seu sabor; ela por ela mesma. Assim, terei meu coração aquecido!

Cuidado, leitor, não pense que farei propaganda ou que Santa Maria é um lugar maravilhoso. Advirto que meu olhar é de um artista que lá viveu e experimentou seus melhores e piores dias – meus e da cidade!

De quando em vez, eu apareço em Santa Maria, pois tenho bons amigos lá, além de boas memórias. Como um ritual sagrado, sempre ponho-me a andar pela cidade.

Entre uma rua nova e encontro uma casa que ali não estava, saio por entre os novos caminhos e construções que tingem o lugar em que cresci. Lá onde era uma pocilga, um matadouro e um lixão, hoje há moradores; há um conjunto habitacional.

Devo confessar que sempre visito aquela pocilga – hoje realocada para o termo do conjunto – somente para me lembrar do cheiro que me leva aos idos de 2000 ou um pouco antes. Não se trata de saudade, mas sim de reverência!

Por entre praças e botecos, eu ponho-me a lembrar das casas que foram demolidas e dos currais que deram lugar às ruas. Toda’quela geografia já não existe mais. Isso não é bom nem mal, porque as coisas se transformam, lembra-nos o menestrel.

Devo admitir, como é comum aos adolescentes, que eu nutria certo ódio pela cidade. Nada contra ela em especial, porém, sentia-me preso a ela. Naquela época mal conseguíamos ir à capital do Estado. Tudo era muito distante; nada era divino, nada era maravilhoso.

Mas sabe, há qualquer coisa que faz com que eu me sinta em casa, quando em Santa Maria chego. Parte de mim gosta de lembrar-se do passo do passado, parte de mim ama o passo presente.

A verdade é que a cidade não evoluiu muito, todavia, não deixou de evoluir. O tempo chega para todos e Santa Maria já não é nenhuma criança. É uma jovem na sua segunda juventude.

Já tem algum tempo que eu procuro escrever sobre essa cidade. Não se trata de homenagem ou algo parecido. Penso que tem a ver o sentimento de comunidade que ela cultivou em mim. Também penso que tem a ver com a alegria que eu sinto em perceber as mudanças estéticas que transformam as geografias. Não sei, há qualquer coisa de poético nisso – pelo menos gosto de pensar que sim.

As cordas invisíveis que me atam à cidade continuam levando-me a ela, ainda que eu já nome resida lá há muitos anos.

Não sou poeta, mas se poeta fosse, dedicaria uma ode a Santa Maria. Mas, soube, lá já tem um poeta, muito caprichoso, que fez esse trabalho.

Sempre penso nos mundos que nos conferem identidade. Gosto de pensar que cada vento frio, cada latido na calada da noite e cada bebedeira fazem-nos em retratos. De foto em foto, temos um filme.

A poesia vai-se embora, todavia, quando lembro-me das necessidades pelas quais passei naquele lugar. Digo, nesse lugar – sou íntimo!

De falta d’água às distâncias comunicacionais com o mundo externo, vivíamos nosso céu e nosso inferno.

De tantos dissabores, tínhamos lá nossos amores, claro. Há sempre vários lados de uma só cidade.

Nada de ruim apaga a visão de um lugar verdadeiramente bucólico e agradável. Além do cheiro da pocilga, lembro-me dos objetos orvalhados que eram deixados à rua, porque não havia quem ousasse furtar o pertence de um co-irmão.

Por essas e outras memórias, eu gosto de pensar que é em Santa Maria a nascente de meu ser. Foi lá onde começou e terminará a cartografia de meu coração.