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Animais

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No quintal daqui de casa, habitam gatos e galinhas. Dos primeiros, apenas um é reconhecido como membro da família; os demais são agregados. Elevei a galinha ao plural, mas, na verdade, há apenas uma família nuclear de galiformes – sim, os galináceos faz parte da família burguesa, de formação judaico-cristã!

Como seres adaptáveis, cada animal vive aqui do jeito que dá. Os gatos agregados dormem pelos telhados madrugada adentro. Só aparecem por aqui ao raiar do dia. Entre os gatos, Manchinha é a mais esperta. Ela é quase como se fosse da família. Na verdade, nós é que quase somos de sua família! Quando chegamos para morar aqui, ela já estava. A dona anterior da casa a adotou, assim como nós adotamos a Lua, uma gatinha filhote.

Manchinha é uma figura. Por ser a dona legítima da casa, ela faz pouco caso da gente. Aliás, no primeiro dia, digo, nas primeiras horas de mudança, ela já tratou de deixar tudo em limpos. A verdade é que ela quebrou meu único prato especial – um daqueles pratos chiques e enormes -, como quem diz: “vai ser daí para frente, porque essa casa é minha; veio porque quis!”.

Manchinha, diferentemente dos demais gatos, tem sua agenda própria. Nunca passa fome. Dorme na pia da casa do vizinho ou mesmo no terraço daqui de casa. Toma café sabe deus onde, almoça por aqui e tira uma sesta ali em cima da tampa do tanque d’água – todo fim de tarde algum. Ela pensa que a gente não percebe. À noite ela dar um rolé e depois volta para casa; pede comida e se deita novamente.

Mas, contando assim, parece que é tudo mil maravilhas. Isso não é verdade. Manchinha teve de conquistar seu lugar. Adquiriu respeito, porque superou adversidades, não porque é a herdeira da casa.

Um dia eu dedicarei um tempo só para falar de Lua. Essa gata é diferente. Ela é a expressão da serenidade. É um tipo de gata que morre sem saber o que aconteceu. Um dia pobre inventou de fugir de casa. Nossa, eu nunca vi um animal tão afetado pela vida. Passou 20 dias fora de casa. De repente, surgiu no quintal, à meia-noite, gritando, digo, miando desesperadamente, como quem estava à beira da morte. Ela não exagerou. A coitada estava magérrima, desnutrida, desidratada.

É interessante como a vida mexe com a gente. Depois dessa fuga, Lua nunca mais foi a mesma. Continuou sendo dócil, porém, deixou de ser uma gata medrosa em relação aos demais felinos. Se antes ela mal podia ver um gato distante, que já corria para dentro de casa, agora, ela põe os gatos agregados para correr.

Por alguma razão, que só elas sabem, Lua passou a implicar com Manchinha. Sei lá, acho que é coisa de “quem é dona de quê”. Mas isso é com elas!

Lua sempre punha Manchinha para correr. Isso nunca fez sentido para mim. Manchinha é aquele tipo de gata que só não toma café com você à mesa se for impedida. Come de tudo, bebe de tudo. Não tem frescura alguma. Já Lua… Lua só come ração, mas não é todo tipo de ração, não. Além do mais, a ração tem de ser fresca. É exigente!

Tenho para mim que Manchinha só suporta Lua porque sabe que uma está na posição de preterida e a outra no lugar de preferida. Manchinha bate em gato enorme em relação a ela, enquanto Lua escolhe a dedo os gatos com quem decide brigar. É um animal muito sem-vergonha. Parece criança quando ver o irmão mais velho e começa e criar coragem em uma briga. Lua não pode ver a gente chegar em casa, que logo se amostra e corre atrás de Manchinha. Essa, como quem está brincando, corre. Mas dá para sentir que ela está “se fazendo”.

O casal de galiformes não faz outra coisa, senão comer. Eles comem de tudo, menos milho. A diversão da galinha está em brigar com o galo e comer a ração de Lua. Basta a gente dar um vacilo, que logo está ela lá, comendo a ração. Às vezes até admiro sua insistência. As aves comem até passarinho novo – eu já temi pela vida de Lua várias vezes; vai que numa oportunidade a galinha a coma; nunca se sabe!

A insensibilidade da galinha chama atenção. Ela não tá nem aí para ninguém. Até Lua, que briga com Manchinha, passou a respeitá-la mais, por ocasião de sua gravidez; enquanto a galinha bica a gata, especialmente quando percebe que ela está comendo alguma ração que Lua dispensa.

A galinha daqui é desalmada, só pode. Outro dia, a vi comendo couros de seus primos, que foram abatidos industrialmente. Por um momento, diante do animal mais horrível do mundo: ela estava comendo um ser da espécie. 

Todos os seres individuais têm personalidade própria, até as perdas! Já tem um tempo que tenho pensado sobre o comportamento dos demais animais. Outro dia, eu ouvi um passarinho me chamar. Juro. Na minha rua existem, sei lá, uns vinte pássaros engaiolados. Todo dia, religiosamente às cinco da manhã, o pessoal de duas ruas perpendiculares põe os pássaros engaiolados para tomar banho de Sol.

Sempre que posso, saio também para tomar meu banho solar junto aos passarinhos. Certo dia, o pessoal pôs dois pássaros para brigarem. O evento fez com que os policiais penais, digo, os “donos dos pássaros” se juntassem para ver a rinha. Somente um passarinho sairia vivo da batalha.

O pessoal deixou os pássaros em cima dos muros das suas casas e se concentraram no duelo. Eu, que sempre observei de longo aquele ritual matinal, continuei no meu próprio rito. Porém, algo diferente me ocorreu. Vi um pássaro cantar para mim. Não era um canto, era um chamado. Eu pude perceber que se tratava de um chamado, porque após emitir os sons intervalados, ele olhou fixamente para mim. Aquilo foi estranho e interessante.

Na ocasião, boa parte dos pássaros desatavam a “cantar”. Todavia, aquele pássaro era diferente. Ele olhava para mim, como quem está chamando alguém. Eu tentei disfarçar o que tinha pensado. Certamente, era um delírio matinal”.

Ele continuou a me chamar. Não resisti, dei-lhe atenção. Pude observar que os demais pássaros olhavam para rinha que se iniciara. Notei um olhar de tristeza em todos. Nunca pensei que poderia perceber tristeza em olhar de aves! Imediatamente, entendi o motivo dos olhares tristes. Mas, ainda não entendia por que aquele passarinho se comunicava comigo, não entendia o que ele dizia. Pude notar que seu olhar era diferente dos demais. Senti, sinceramente, que ele desejou usar os mesmos caracteres linguísticos que eu. Confesso que senti o mesmo: eu queria falar seu idioma!

Nossa interação não passou de olhares. Aquela experiência me deslocou. Senti como se eu tivesse de fazer algo. Por alguma razão, senti-me culpado por toda a humanidade. Os homens que ali estavam entravam em regozijo, enquanto eu caía em crise existencial às cinco horas da manhã. Tentei fazer o que estava ao meu alcance. Precisava atenuar minha culpa. Falei com o “dono” do passarinho. Disse-lhe que tinha interesse em comprar aquele pássaro. O dono não achou minha proposta estranha, pois, o comércio era algo bastante entre um banho de Sol e outro.

Assim que comprei o pássaro, levei-o para casa. Eu precisava ter uma conversa com ele. Pus a gaiola em cima da mesa e o olhei fixamente. Porém, ele já não me dava atenção. Na verdade, virou as costas para mim. Sei lá, nada tira de minha cabeça que ele ficou decepcionado comigo. Talvez tenha entendido que eu era seu novo senhor. Para a surpresa dele, eu o soltei.

Inicialmente, ele achou estranho ver a porta da gaiola aberta. Ficou desconfiado. Ele estava acostumado a vê-la aberta somente quando outro pássaro tinha de entrar nela com o objetivo de brigar pela vida – até à morte! Mas, diante de si, havia apenas uma porta aberta. Como quem cuidasse para que eu não me arrependesse, ganhou rapidamente o mundo. Foi-se.

Eu gostaria de dizer que ele me agradeceu e, por eterna gratidão, sempre aparecia no meu quintal. Mas não foi isso que aconteceu. Nunca mais o vi. Inicialmente, fiquei até um pouco chateado e desapontado. Porém, pensando bem, não faz o menor sentido alguém ser grato ao seu algoz. A piedade de um, não extingue o mau de todos!

O ser humano é gratuito. Outro dia pisei em uma aranha até sua morte. Era uma caranguejeira. Eu sabia que ela não fazia mal, porém, isso não me impediu de a incinerar. Com vergonha, admito que senti certo prazer em vê-la em chamas. Aquele animal só teve o azar de cruzar comigo. 

Acho que tenho de me confessar. Não tenho certeza se seria para um padre, mas tenho de me confessar. Mais que isso, é preciso espiar meus erros. O triste é que o espio maior do ser humano seria eliminar a humanidade, mas se assim o fizéssemos, estaríamos agindo contra nossa animalidade. Mas, “será que ainda somos humanos?”. Algo me diz que não.

Tenho percebido que quanto mais velhos nos tornamos, menos respeito pela vida adquirimos. Alguns consideram contrário, mas são as exceções. A velhice nos faz pensar menos e agir mais.

Nossas vidas são basicamente desequilíbrios entre tolas e louváveis ​​ações, entre maldades e bondades. Alguém que é inteiramente bom, além de não existir, não é digno de confiança, assim como o quem é inteiramente mal.

Veja só, a galinha daqui de casa, de repente, não é tão insensível como eu reportei. Pensando bem, o grande insensível da história sou eu – que represento, nessa trama, a humanidade.