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Eu sou rasta e daí?

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A Radames

Queria eu ser apenas mais um, ao andar pelas ruas. Nunca foi assim, nunca será. Como se eu fosse um Sansão às avessas, toda minha fraqueza se encontra em meus dreads. Como um nazireu invertido, fui separado para a zombaria e escarnecimento.

Quando olham para mim, só veem as marcas do pecado. Desde muito cedo percebi que para eles pecado e cor escura eram as mesmas coisas. Quando se tem tranças, se é negro, se não for, se parece, o que dá no mesmo. Logo, não presta, pois, nenhum preto presta. Nenhum indígena presta. Ninguém, por fim, que usa roupas, falas, gestos, traçados e penteados que não sejam comuns aos napë merece respeito.

Sou um homem branco de dreads. Na verdade, eu sou o que geralmente chamam de “pardo”. Talvez alguns digam, com gracejo e infâmia, que eu sou um leite com uma pitada de café. Não faz diferença a maneira com a qual ferem, digo, se referem a mim, porque todas elas revelam o racismo explícito contra minha humanidade.

Meus cabelos, sangue que tanto venero, são parte de mim, porque mim sou. Eles poderiam comunicar um traçado meu, todavia, comunicam outros elementos impostos pela estética dos napë. Quando ando pelas ruas, a polícia me aborda, porque, entendem eles, um homem pardo com dreads com certeza usa e tem drogas. Isso ocorre uma, duas e até três vezes ao dia.

Todo homem de dread já teve uma Odisseia para chamar de sua. Lembro-me de um dia que mais se pareceu com a pena de Joyce. Às nove horas fui abordado pela Polícia Militar, porque estava com “atitude suspeita” – tenho para mim que meu andar e minhas roupas incomodaram os agentes. Eles revistaram minha mochila e me fizeram descalçar meus tênis. Não se contentaram em fazer uma ginástica em meu corpo, quiseram averiguar meus cabelos. Ao terminar o escrutínio, perguntaram se faziam muitos dias que eu não tomava banho, perguntaram se eu não tinha medo de que alguém cortasse meus cabelos.

Não foi normal, mas aquelas agressões já se normalizaram em minha estética. Minha alma já está dormente. Após a humilhação e os insultos, calado prossegui meu caminho. Nervoso com a situação, resolvi entrar no mercado que encontrei pelo caminho; precisava comprar uma água.

Quando entrei no mercado, todos me olharam sem o menor constrangimento. Não me olhavam com nojo, digo, não me olhavam somente com nojo; eles acompanhavam meus passos. Além de câmeras, haviam os olhares vigilantes dos seguranças, dos estoquistas e dos atendentes no caixa, claro.

Ninguém me disse nada. Porém, posso dizer, aquela situação foi um pouquinho pior que a violência da abordagem policial. Sim, pois os milicianos deram vasão ao que criam, a partir de uma estética que legitimaram. A vivência no mercado foi uma exposição de dissimulação, mas nem tanto. Estavam no limite do crime. Não praticavam crime, mas me criminalizavam com seus olhares infernais – que me fulminavam o espírito.

Saí do mercado o mais rápido que pude. Estava arrependido da escolha que eu fizera. Não era nem mesmo meio-dia, e já estava com ânsia de vômito e refletindo sobre a vida. Lembro-me de que eu ia à casa de minha namorada. Pensei em desistir, mas prossegui, afinal, ainda eram meio-dia.

Eu gosto muito de andar a pé. Sempre que posso, ando metade do caminho a pé e outra metade de skate. Assim o fiz. Quando faltavam mais ou menos cinco quilômetros, pus-me a navegar com meu skate. Eu andava muito rápido. No skate eu me sentia livre e conseguia esquecer a pálida tristeza dessa realidade racista.

Cheguei à casa de Lucy por volta das 12h30. Sim, eu estava, como dizemos, só o pirão. Apesar de o porteiro de seu prédio me conhecer, demorou um pouco para me reconhecer. Não me parece que foram os cabelos o problema… as roupas, talvez? Não sei.

Bem, ao encontrar Lucy, tive um refrigério espiritual. Eu me sentia bem quando estava ao seu lado. Nos encontramos para namorarmos um pouco e prepararmos uma festa para seus amigos. Até onde a memória me captura, era aniversário surpresa de um deles. Ela queria que a festa fosse em sua casa e insistiu para que eu fosse. Disse-me que seria uma ótima oportunidade para eu conhecer seus amigos. Bem, era início de namoro, achei um ritual justo.

Por volta das 17h os amigos de Lucy começaram a chegar. Por sorte, não havia muito o que fazer em relação ao preparo da festa. Na verdade, por “preparar a festa” eu entendi que seria varrer a casa, encher algumas garrafas de água e fazer uma playlist inicial. E assim o fiz.

Eu gostei dos amigos de Lucy. Eram todos muito bacanas e abertos a novas amizades.

—  Rasta… hey, rasta.

— Opa, fala irmão. Estava demorando, pensei comigo.

— Se ligue, esse omi tem um baseado aí, não?

— Brother, eu nem fumo, ô.

— Vixe, pode crer… foi mal, galado. Pensei que esse omi fumava. Tá ligado, né.

— De boas… To ligado.

Eu ainda alimento a ilusão de que terei um dia, ao menos um dia, em que não passarei por situações que evoquem essa pergunta. Mal tive tempo de pensar no momento…

— Rasta, brother, tu é o namorado da Lucy, né?… tu tá adiantando alguma coisinha aí, sabe quem tem? Assim, na moral, sem querer ser preconceituoso.

— Mermão…  Sei não, poh… Eu nem fumo, visse.

— Ah, sim, sim… De boas, então… Tamo Junto.

— Massa… Tamo junto.

Depois desses dois, ainda apareceram mais três, fazendo a mesma pergunta. Como se fosse um ritual de iniciação, tive de dizer algumas vezes que não fumava maconha.

Quando eu pensei o pior já tinha passado, alguém teve a ideia de pedir para eu ir comprar mais cervejas. Eu aceitei sem problemas. Acho que os cinco por cento de álcool me fizeram esquecer que não há nada mais perigoso para um homem pobre preto – melhor dizer, não napë – de dread, que sair à noite, sobretudo, sozinho. Não deu outra, não dei vinte passos… a polícia me parou. Desceram quatro soltados pretos fortemente armados. Ordenharam-me, com a arma mirada para minha cabeça, que eu levantasse as mãos e encostasse na parede – gosto de ler a história brasileira sob o ponto de vista da escravização, não consegui evitar a imagem: homens pretos enquadrando um homem preto.

Após toda a oitiva, liberaram-me. Bem, a noite tinha de terminar daquela forma, pensei comigo. Comprei as cervejas e retornei, mais ou menos tranquilo, para o prédio de Lucy. Sabe deus por quê, mas o porteiro não me deixou mais entrar no residencial. Eu tive de ligar para minha namorada para liberar meu ingresso no residencial – sorte minha que os policiais não me roubaram dessa vez, sorte minha que Lucy me atendeu. Eu disse que fiquei tranquilo depois da abordagem, porém, a verdade é que eu nem me lembro os motivos pelos quais fui impedido de entrar no prédio; na primeira recusa do porteiro, tratei logo de ligar para Lucy. Eu estava cansado – andamos cansados!

Não contei para ninguém o que me ocorrera. Todos continuamos a beber e se divertir. Lá pelas 22h o pessoal parecia cansado. Alguns começaram se acalmar. Um ou outro se achegou até a mim para conversar um pouco. Lembro-me de Ricardo… sim, de todos os amigos de Lucy, só tenho na mente o nome dele porque ele fez um comentário que me fez rir… de raiva.

— Sabe, irmão, na moral, sei que vai me entender… às vezes eu acho as pessoas vivem muito em suas bolhas… sei lá, parecem que vivem seus fantasmas… para todo lado que olham, veem racismo e preconceito… tipo, a gente está aqui, eu e vi e outros… estamos todos de boas, tranquilos… só na paz….

— hum… uhum…

— Sei lá, cá entre nós, eu acho que a galera exagera com esse rolé de perseguição e tal… como se sempre fosse racismo e tal.. às vezes são apenas acasos infelizes…

— Eu…

— Desculpa interromper… tipo, você é rasta e daí?

— É, eu sou rasta e daí, né?

— Pois é, poh.. e daí? Não, pera, você foi irônico?