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Psicanálise ou antropologia do lixo: sobre o bicho humano

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Quando jovem, na verdade, quando adolescente eu catei lixo. À época eu tinha apenas 12 anos. Estranhamente, eu já tinha um olhar antropológico. Fui visitar minha tia na cidade de João Pessoa. A fim de não ficar parado em casa, o esposo de minha prima resolveu que iria catar lixo para tirar uma grana. Não me lembro se ele me convidou ou se fui eu que me propus.

Em frente à casa de minha tinha havia um ferro-velho. Lá só não se comprava lixo orgânico. Decidimos, eu e meu companheiro, que iríamos fazer uma grana e o ponto de venda era muito conveniente.  Pra mim era só diversão. Talvez para meu companheiro fosse um pouco constrangedor, não sei. Aliás, talvez eu servisse para ele como um atenuador de constrangimento, não sei.

Éramos típicos trabalhadores. Saíamos de casa às 7h e só voltávamos às 12h. Descansávamos um pouco. Logo em seguida, às 14h voltávamos para trabalhar até o fim do dia.

Conheci alguns bairros de João Pessoa somente andando de rua em rua, com um carrinho, catando revirando as latas de lixo das casas. Às vezes era eu, às vezes era meu companheiro quem catava o lixo. Alternávamos, justamente, entre espetar as sacolas e carregar o carrinho.

Lembro-me que não deixávamos passar nada, absolutamente nada. Escrutinávamos todo o lixo. Traíamos quase tudo. Somente o lixo orgânico ficava de fora, pois, o dono do ferro-velho não trabalhava com esse material. Papelão, plástico, cobre, alumínio, ferro etc., tudo a gente punha no carrinho.

No fim do dia tínhamos algo em torno de 30 reais. Ganhávamos algo em torno de R$ 1,75, 00 por hora. O salário mínimo à época era algo em torno de R$ 135, 00. Ou seja, um trabalhador assalariado ganhava cerca de R$ 4, 50, 00 por hora. Então, nós ganhávamos, cada um, cerca de um terço de um trabalhador comum para trabalhar 8h por dia.

Mas, aqui eu não quero falar de miséria, nem exploração. Quero falar sobre a psicanálise ou da antropologia do lixo.

Tenha a memória fresca em minha mente de que nós entendíamos que uma casa tinha fartura a partir da quantidade de lixo e de seus tipos. Sabíamos qual família era vegana, assim como sabíamos quais famílias gostavam de mimar seus filhos. Tudo a partir de seus lixos.

Pela expertise que adquiri, até hoje eu observo meu lixo. Na verdade, meu grau de satisfação aumenta ou diminui de acordo com a quantidade e o tipo de lixo eu produzo. Claro que não estou fazendo uma ode à produção de lixos. Estou falando sobre o quanto podemos saber da realidade e até da psique de alguém a partir do lixo produzido.

Não sou do tipo que louva a profissão de catação de lixo, pois, sei que ela não dignifica nem gera cidadania para os indivíduos. Porém, de modo alguém trato mal quem a exerce. sei que foi a “força do destino” – leia-se: exploração capitalista – que o pôs naquela condição.

Catar lixo para vender materiais às casas voltadas para esse mercado, é totalmente diferente de revirar lixo para se alimentar. Aqui está a maior revelação da antropologia do lixo: não é normal, mas praticável, revirar lixo para vender os materiais lá encontrados, ao passo que é totalmente indigno e inadmissível que haja pessoas que catam os lixos para de lá extaria alguma “refeição”.

Além da condição material, chama-me atenção a condição psicológica dos indivíduos submetidos a essa desgraça social. não consigo nem mensurar o sofrimento, humilhação e tristeza de quem passa por essa experiência.

No lixo encontram-se vários bichos, dentre eles, o ser humano.