O elã da vida, ou sua vivacidade, se preferir, é uma das experiências mais místicas que temos. Apesar de haver explicação científica para quase tudo, as explicações sobre o que viria a ser a vida só são aceitas a partir de um ponto de vista (neurológico, biológico, medical, etc.), que não necessariamente exclui todos os outros.
Nada mais misterioso que o impulso vital. Tal qual a seiva da planta, há algo que anima a vida. A esse algo damos o nome de “alma”. Esse de que há uma “alma do mundo” que se exprime nas rochas, nas plantas, nos animais menos e mais complexos pare ser bastante assentado na Humanidade. A depender dos pontos de vista teológico e filosófico, alguns ousam, até econômico-politicamente, a assentir que o ser humano é o ponto alto dessa alma, haja vista nosso alto grau de consciência.
Acho que é um consenso, entre as culturas humanas, que há algo que nos anima. Falar, ouvir, se movimentar, tocar, sentir, pensar, ver, desejar, etc., tudo isso tem por força motriz o impulso da vida.
Talvez Schopenhauer tenha sido o filósofo ocidental que mais bem falou sobre a vida no sentido místico. Além de esta fazer par com a morte, ambas se constituindo na pura existência – que é o mesmo que nada! –, se confunde com a própria vontade. Isto é, vida é impulso, é fluxo, é transcorrer.
A vida, essa experiência mística cuja graça alcançada por nós jamais poderá ser paga senão vivendo-a intensamente, quer viver, quer consumir, quer continuar. Essa seiva é uma bênção.
Porém, o mesmo impulso que nos faz amar viver e querer a eternidade, dizendo não ao suicídio, também nos paralisa diante do mundo, por medo de morrer: por amor à vida, se foge da morte. A busca da autoconservação faz com que sejamos tão cautelosos e prudentes, que às vezes essas palavras se fazem eufemismos para a covardia e a resignação.
Ainda nos anos 20, do século passado, estudiosos como Wilhelm Reich se impuseram a seguinte questão: por que os trabalhadores, que são oprimidos, não se revoltam contra seus algozes? Por que, em vez disso, se juntam aos seus opressores, como no caso do fascismo? Essa é uma das perguntas mais importantes para todos que vivem em sociedade. Por detrás da questão, está outra mais simples e visceral, a saber: por que a autoconservação é mais importante que a liberdade e a dignidade?
De longe, essa pergunta parece tola, pois, qualquer um poderia responder que não há luta por liberdade e dignidade sem vida. Bem, essa resposta óbvia guarda uma falsa resolução de problema. Pois, é falso que há vida sem liberdade e dignidade. Pode haver existência, mas vida, não.
A primeira vez que me impus uma questão parecida com a de Reich, foi quando eu tinha 15 anos. Nessa época, eu mal entendia o mundo pelo conceito, pois, só vivia pelas imagens. Apesar de não ser rotina, volta e meia via uma pessoa em situação de rua, um transeunte, dormindo à rua, pedindo esmola. Perguntava a alguns amigos quais seriam os motivos que mantinham aquelas pessoas vidas. Digo, na minha cabeça, o suicídio seria o mais esperado e até digno, haja vista a falta de sentido que era viver cotidianamente aquela humilhação, como se tivesse mesmo de expiar seus pecados daquela forma.
Cresci e ainda não obtive respostas que me deixassem satisfeito. Em abstrato, eu não entendo os motivos de deixarmos os ricos e poderosos fazerem o que querem com a gente, sem que paguem por isso. Para mim, não faz o menor sentido aceitar o que esse presidente faz, sem receber justiça alguma. É realmente muito estranho, sobretudo quando agir de “forma civilizada” diante de absurdos, é o mesmo que legitimar a barbárie que eles imprimem em nós. Todavia, em concreto, u tenho as minhas suspeitas.
O Ocidente é cultivado na hidroponia cristã, por isso, matar é um ato teoricamente horrível, ao passe que a humilhação está para os filhos de deus, assim como os céus estão para os pássaros. Entre seus valores, somente virtualmente, os ocidentais amam a vida. Na prática, qualquer concreto é mais importante que um ser humano.
Eu cresci nos anos 90, então, não tenho a menor dimensão estética de como era o período militar. Entretanto, me permito conjecturar que o Brasil de hoje se parece muito com o daquela época. O elã da vida é uma bênção e uma maldição. Por amor (prudente) à vida, se caminha para a morte.
É muito esquisito: temos um presidente que está matando seu povo e o Congresso não faz nada, o Estado-Maior (Exército, Marinha e Aeronáutica) não faz nada, o STF não faz nada e o povo, que é a vítima, não faz absolutamente nada para salvar sua própria vida. Muito estranho!
Às vezes penso que não é o elã da vida a grande questão. Parece que ele não é nem bênção, nem maldição. A impressão que dá é que a compreensão da vida não está vinculada à dignidade e liberdade – curiosamente, esses conceitos são, na história da economia política, princípios do Liberalismo.
A crença cristã colabora muito para nossa anestesia, contudo, assim entendo, são as concepções de mundo que nos paralisa, pois, se não fosse assim, outros povos, que são ateus ou têm outros sistemas de crenças, não aceitariam, não permitiram, que fossem oprimidos, antes lutariam até à morte pela e para sua liberdade.
Pode-se viver bem ou mal. Não me parece suficiente apenas ter vida, afinal, até as pedras vivem! Precisamos viver com boa qualidade, o que significa, segundo entendo, viver com saúde e liberdade, como já disse um colega de mesa de bar.
Gosto de pensar que a seiva não tão mística da vida é uma membrana moral com duas camadas: liberdade e dignidade. Sem elas, somos apenas organismos vivos. Sem elas, somos apenas organismos vivos. Sem essas características, organismo humano algum pode ser considerado, assim entendo, como ser vivente, apesar de ter vida.