Por Anderson Soares
(Educador e Psicopedagogo)
Ao que tange as questões étnicas e raciais do Brasil, muitos alimentam a ilusão de que não existem resquícios perversos dos quase 400 anos de escravidão negra no país. Estes alimentam a fantasia da não existência de racismo baseando-se na miscigenação existente, numa carta constitucional democrática, pela ausência de manifestações racistas explícitas de dimensões institucionais, como no apartheid da África do Sul (esta anomalia histórica começou a ser desmantelada em 1991!) e nos EUA (até fins dos anos 60).
Podemos afirmar que, em fins do século XIX, as leis mudaram com o advento da Abolição e da República, porém os hábitos excludentes e a mentalidade racista não foram superados. Os negros foram legalmente considerados objetos e subespécies por quase 400 anos e deixam de sê-lo apenas porque a lei mudou? Essa foi a crença majoritária!
A escravidão foi abolida apenas pela pressão internacional, que estava ávida por mercado consumidor. O trabalho escravo tornava-se obsoleto diante do processo de industrialização e da modernização da estrutura econômica. Além de os negros serem preteridos e substituídos pelos imigrantes europeus, passaram a ser perseguidos (Lei da Vadiagem presente no Código Penal de 1890) e subestimados em seus hábitos e cultura.
Os ex-escravos não foram indenizados. Os donos de terra continuaram com o poder econômico e político e não houve nenhuma vontade ou esforço para diminuir a desumana disparidade entre brancos e negros. Na prática, a abolição significou abandono (subcidadania) e as pessoas de pele negra foram estigmatizadas. A cor negra passou a ser referência de marginalidade, de depreciação pessoal, de trabalho braçal\desqualificado.
Estes fatos são demonstrações claras de que os hábitos e a mentalidade racista não haviam sido superados. Tudo isso é reforçado pelo racismo científico e eugenia que tanto impregnaram as Ciências Sociais, Medicina e Psiquiatria de fins do século XIX e começo do XX, na tentativa de confirmar a “inferioridade” biológica e a “incapacidade” dos negros na inserção numa sociedade supostamente livre.
O nosso sistema educacional também reproduziu o racismo no ambiente escolar e nos livros didáticos, excluindo e limando os personagens negros de nossa História. Ressaltamos que, em nossa formação educacional, construímos uma visão de mundo europeizada (conforme desejo dos dominadores), sendo necessária, na contemporaneidade (apesar de resistência), a obrigatoriedade da disciplina História da África e Cultura Afro-Brasileira, com o intuito de as gerações futuras construírem uma visão de mundo mais diversificada e menos deformada.
Além de olharmos de forma estigmatizada e preconceituosa para o continente africano, nós não temos a real consciência de que as nações européias (“missões civilizatórias”) saquearam terras alheias e usufruíram de mão-de-obra escrava por mais de três séculos. Com o fim do processo de colonização, estas nações não devolveram o que saquearam, nem acreditam que têm uma imensa dívida com o violentadíssimo continente africano.
O racismo não declarado existente no Brasil contemporâneo é complexo e de difícil entendimento, por conta da eficácia da ilusão de uma democracia racial (não resultante em áreas como Direito e Medicina, por exemplo), da miscigenação e pela existência de leis democráticas (“todos iguais perante a lei”) que acabam camuflando as formas mais perversas de exclusão. Ainda, um “pacto” social velado: uns fingem que não discriminam e outros fingem que não são discriminados.
Para muitos ainda é difícil entender que a miséria brasileira tem conotação racial. Esta miséria não é democratizada, como muitos pensam. Existe a crença de que o branco pobre vai enfrentar os mesmos obstáculos que o negro pobre: o (a) branco(a) não será preterido(a) em seleções para trabalhar em contato com o público em ambientes sofisticados e em que a “aparência” física é preponderante (os exemplos são inúmeros, olhem ao redor!). Vai carregar consigo um importante ponto de “desempate” diante do negro pobre, conforme a atmosfera de racismo velado.
O livro “Nós não somos racistas” (do jornalista Ali Kamel) afirma que o racismo não é um aspecto estrutural da sociedade brasileira, que não existem impedimentos para a mobilidade social dos não brancos e que o branco pobre enfrenta os mesmos obstáculos que os não brancos pobres.
Façamos um retrospecto da construção da referência de beleza em nosso país, tendo como ícone a mulher branca. Então, começaremos a entender o sentimento de autorrejeição de pessoas que não têm como atingir os patamares de beleza que são reforçados a todo instante em comerciais de cosméticos e demais produtos de beleza. É necessário entender também por que crianças negras, em orfanatos, vivenciam imensas dificuldades no contexto de adoção.
A Psicologia Social e a Sociologia podem nos ajudar a entender o processo subjetivo de construção da identidade dos não brancos no Brasil. Neste processo, os não brancos olham para si próprios como a sociedade “europeizada” (os que alimentam a fantasia de um Brasil branco e chique) os vê; assim como o empregado se enxerga com os olhos do patrão explorador: sua identidade e bases internas constroem-se sob esta atmosfera.
Semelhante processo subjetivo se deu com os negros da África do Sul, em tempos de apartheid, quando eram obrigados a aprender o idioma dos dominadores, entender que os seus próprios hábitos, cultura e traços físicos eram inferiores e por isto aprender a repudiá-los.
Quais são os recursos internos e subjetivos que fazem com que uma pessoa, num restaurante, confunda um cliente negro(diplomata) com o manobrista (negro)?
De onde provém o espanto de um paciente, ao entrar em um sofisticado consultório do bairro do Tirol, de ser atendido por um médico negro e de onde provém o sentimento de dúvida diante da qualificação de um raro desembargador negro? Mais ainda: um policial, diante de várias pessoas a serem revistadas, faz a revista apenas na pessoa negra presente no local.
Procuramos entender os argumentos do sociólogo Demétrio Magnoli e da professora de Direito Constitucional Roberta Fragoso Kaufamn , cujos discursos são contrários às políticas afirmativas e às cotas.
Nós entendemos que as políticas afirmativas e as cotas não têm significado de favorecimento, mas sim o de admitir uma imensa dívida história e a justa reparação aos danos sofridos pelos não brancos da sociedade republicana (democracia do capital) que sempre foi excludente.
É necessário admitir também a existência de desigualdade de condições que faz com que o acesso à universidade seja privilégio daqueles de melhor condição econômica (quase sempre brancos), que não enfrentam obstáculos em todo o processo educacional: por isto obtêm o mérito tão exaltado pelos autores mencionados.
Estes mesmos citados defendem uma educação igualitária desde a Educação Infantil e a não necessidade de cotas para o acesso à universidade.
No nosso entender, o Estado sempre funcionou como instrumento regulador a serviço das elites econômicas: usam suas instituições e leis democráticas para fazer sua manutenção e concentrarem ainda mais o seu poder. É notório que da parte do Estado não há, efetivamente, nenhum interesse no acesso igualitário à educação por parte dos mais pobres.
A sociedade teria que passar necessariamente pelo processo de distribuição de renda para que o acesso à educação seja concretamente igualitário. Entretanto, as elites econômicas não farão tal distribuição nem por compaixão e nem mesmo pela existência das leis.
É fundamental que a sociedade brasileira admita a existência do racismo como herança da prática e mentalidade escravocrata, para assim combater todos os seus resquícios de maneira sistemática. Urge entender também que o capital é o grande inimigo gerador das intolerâncias diversas (segmentando, coisificando e hierarquizando seres humanos: dividir e conquistar!); como as realizadas pelas nações européias colonizadoras, com a conivência da Igreja Católica que além de usufruir do trabalho alheio, afirmava que os negros não tinham alma, para assim justificar a escravidão.