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“We do not consent”: a massa ante o coronavírus

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Para a infelicidade dos que temiam – ou como que quase gozavam – pela catástrofe, temos atravessado o olho do furacão. E, sem faltar para com a verdade, em muitas regiões o vírus retrocede apesar da quase inexistência de regulação impositiva (ou quando muito, de uma regulação bastante precária). Esta situação é ainda mais significativa no Brasil, centro das atenções em diversas polêmicas acerca do comportamento “negacionista”, “obscurantista”, ou quaisquer outros termos disseminados como sopa do bem-pensar. Agora os especialistas de tabloide e a intelligentsia midiática se desconcertam e se entreolham como que pasmados: Como? Não afundamos todos devido às imprudências de um povo ensandecido?

Voltemos a um artigo de opinião assaz compartilhado ainda no início desta pandemia. Byung-Chul-Han, no findar do mês de março, publica no El País O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã. Além de modificar “ligeiramente” toda a “hipótese” que vem disseminando nos últimos anos (“voltamos a erguer limites imunológicos”; a fim de explicar a reação violenta ao vírus, Han busca afirmar que se trata aí do retorno abrupto do paradigma imunológico onde ele já havia desaparecido. Trata-se, é claro, de um duplo movimento: negar sua tese ao mesmo tempo que tenta salvá-la do naufrágio), o artigo faz outras afirmações que se articulam facilmente no discurso bem-ponderado dos experts. Gostaria de chamar a atenção para dois aspectos.

O primeiro deles, mais abrangente, diz respeito àquilo que se tornou uma espécie de lugar-comum em comparações ocidente/oriente. De um lado, o ocidente individualista (não necessariamente egoísta, como bem lembra ele), do outro o oriente coletivista. Os governos asiáticos teriam, segundo essa visão, uma maior facilidade em impor medidas autoritárias devido à precariedade de sua noção de “indivíduo”, conceito tão moderno ocidental… Além do mais, esta visão coletivista teria mais facilidade, em certo sentido, no convencimento da urgência de um plano coletivo, de um projeto institucional, que teria como efeito a manipulação estratégica dos “indivíduos” para uma visão do “todo”. A partir disso, entramos então no segundo aspecto: a questão da vigilância digital ou o fantasma do big data, que se vincularia a esta noção de “coletivismo”, isto é, as populações asiáticas estariam aceitando mais facilmente sua instrumentalização devido a sua baixa estima pela liberdade, tão cara ao ocidente.

Peço perdão se incorro em simplificação excessiva do ilustre comentador cultural dos nossos tempos. Sabemos, entretanto, que esta visão está aí, como que tornada uma verdade dada. E sabemos também o quanto de simplificação existe nesta dicotomia. Sobre a noção de que “o oriente” tem baixa estima pela liberdade, bastaria apenas indicar a obra de um autor que atualmente tenho lido com certo distanciamento, mas que acerta ao criticá-la: Amartya Sen em seu Desenvolvimento como Liberdade.

Mas não a abandonemos tão rapidamente. Ela servirá para alguns comentários que teriam o potencial de invertê-la em relação ao sentido dado por ele. À primeira noção, mais abrangente, se liga uma opinião moral que possuiu – e possui – muito apelo: a negação do confinamento estaria ligada a um “egoísmo” (sim, aqui já podemos utilizar a palavra sem comprometer o filósofo) fundamental de indivíduos que não enxergam um
palmo além do próprio umbigo. Este egoísmo teria como consequência imediata a obstrução de uma visão “coletiva”, de um “plano sanitário coletivo”, que levasse em conta a importância e valor das vidas individuais. Poderia parecer contraditório que a negação da “liberdade individual” tivesse como finalidade o próprio indivíduo. Mas não há nada de novo aqui, estamos no terreno da perspectiva do contrato: os filósofos que se encarregam destas querelas formulam tal noção como uma “modificação de nossas exigências particulares” a fim de se obter uma base possível de cooperação. O “argumento prudencial”, na medida que torna possível o “contrato”, possui, de fato, um apelo ao interesse individual. Àqueles que se furtam de seus deveres como contratantes, apenas o repúdio.

Talvez este seja um dos principais argumentos daqueles que defendem – ou pelo menos defendiam –, em todos os espectros políticos, o confinamento, seja impositivo ou voluntário. Na verdade, o voluntarismo no confinamento, tão criticado no Brasil por revelar um descaso governamental para com o problema, ganhou ar moralista ainda mais
importante: bom é aquele que respeita o confinamento; mau é aquele que desrespeita; melhor ainda é aquele que o faz por um senso de dever ético, sem obrigação legal, e que o torna tão melhor do que os outros! Não seria necessário citar aqui os mini-policiais criados pela situação. A polícia da moral, constituída por coitados afetados, “escrachou” muitos destes “maus” cidadãos.

Mas deixemos o julgamento moral: este é o trabalho dos jornalistas, comentadores de tabloide e “intelectuais” por demais apressados… Não retiremos deles seus meios de subsistência. Acredito, entretanto, que a questão até aqui se encontra mal colocada. Retornemos a um dado fundamental, que no Brasil foi muitíssimo evidente: a resistência
ante o confinamento. Para além do dever-ser tecnocrático, o fato é que houve – e há – um desprezo e um efetivo descomprometimento para com o confinamento. O “furo” da quarentena, como foi batizado, esteve capilarizado transversalmente na população. Lembro-me de brincar em algumas discussões com amigos, que também defendiam a visão acima exposta: “como? o coletivo contra o coletivo? o coletivo contra um plano sanitário coletivo?” Talvez os termos sejam imprecisos, mas o essencial é que há aí uma ironia subjacente. Voltamos à visão do povo absurdo, infantil, descuidado; aquele que precisa ser cuidado por um plano elaborado pela autoridade do Pai. Populophobie, diriam alguns.

Uma visão adequada da situação precisa encarar uma discussão mais complexa acerca da “massa” e de seu comportamento estocástico, não-aderente. Também precisa levar em consideração uma discussão acerca de valores. Mas não focarei nisto. O que quero ressaltar é que, do Partido Comunista chinês ao governo liberal de Macron, o que não se percebe é que há justamente uma forte similaridade no apelo institucional projetivo. Toda a moral do contrato é projetiva, ela depende de uma institucionalização.
Por isso se torna tão essencial uma compreensão do que significa uma “sociedade contra o Estado”, ou como reatualizaria Maffesoli: uma socialidade contra o Estado. O que está em jogo na questão chinesa, asiática, não é um coletivismo que anularia o indivíduo. Muito pelo contrário. Precisamos nos lembrar das lições tão atuais da sociologia alemã:
onde há Social, há Indivíduo. O Indivíduo é componente correlato do Social, e as estruturas coletivas modernas são respaldadas pela atomização advinda da eliminação das estruturas comunitárias. Diria, pois, que no caso chinês há fortemente presente a noção de indivíduo e individualismo, na medida em que há êxito de partido, Estado etc… (compreende-se, é claro, que com individualismo Han busca dizer não que não há indivíduo, mas que este possui menos prerrogativas liberais, efeito de uma menor estima pela noção de indivíduo… sabe-se, entretanto, que estas prerrogativas foram e são facilmente suspensas. Em todo caso, acredito que não há uma escolha feliz na colocação do problema). Da mesma forma, não haveria um contraste severo com o ocidente, e isto porque o que também está em jogo é uma disputa entre um institucional impositivo e uma massa resistente.

Percebe-se aqui as possibilidades analíticas que a distinção entre sociedade oficial e sociedade oficiosa permite. Ela recoloca a questão em termos menos confusos e percebe-se desde já que, à pergunta “o coletivo contra o coletivo?”, a resposta se torna menos problemática. Como bem nos lembra Maffesoli, a sociedade oficiosa, errática, possui uma dinâmica que não é aquela da moral do “dever-ser”, mas de um “imoralismo-ético” fundamental. Imoralismo-ético espontâneo, “expressão do querer viver global e irreprimível”, consciência incorporada da estrutura orgiástica, negadora de projetos e afirmativa da importância dos afetos e da paixão. Não seria preciso citar aqui a eficácia própria de todos esses elementos “irracionais”. Ora, qualquer estrutura tecnocrática baseia-se no projeto, no dever-ser, literalmente “aqui ou na China”; creio já ter me feito entender…

É aí que a análise vira de ponta-cabeça a sopa do bem-pensar: a resistência ao confinamento não expressa um individualismo egoísta. Muito pelo contrário, tratando-se de um fenômeno capilarizado e global, testemunha a resistência da socialidade em abrir mão de seus valores próprios, ligados à comunhão, ao tátil, ou em uma palavra: ao estar-junto. A força da socialidade testemunha uma negação dos valores individualistas que
caracterizaram o moderno. O próprio Byung Chul-Han expressa: “o vírus nos isola e individualiza”; a negação do confinamento é a negação do muro da vida privada. Talvez possamos mesmo interpretar a indiferença asiática frente às técnicas de vigilância como uma medida que dispensa o isolamento e permite a continuidade da vida societal. Sabe-se que aplicando tais técnicas a tecnocracia não necessita restringir a mobilidade social como o faz a sua alternativa, o confinamento.

Certamente, há mortos. A mídia retira seu combustível sobre o tema da atualização diária dos números anônimos. Há certamente uma tragicidade na situação e não se trata de negar os sentimentos de luto e tristeza envolvidos. Mas uma análise apropriada, que não nega o , também deve procurar entender a perspectiva societal da aceitação da finitude humana e do perseverar no ser. Apesar das perdas individuais, o saber incorporado da massa sabe que o que conta é o grupo, que o indivíduo é dispensável e que o que importa é que ela persevere no ser. O momento atual é testemunha da eficácia da massa nessa perseverança. Apesar dos pesares, atravessa-se a tempestade e o vírus arrefece. Entre os cientistas surge a defesa de um retorno da “vida normal” para os grupos menos suscetíveis, e também agora se fala dos efeitos psíquicos adversos do confinamento, o que sinaliza que o discurso “científico” perde o relativo consentimento que vinha mantendo. Certamente, há agora a preocupação com as novas ondas. A Europa testemunha isto neste exato momento. Mas a Europa e outras partes do mundo também testemunham os diversos protestos contra novas medidas de confinamento. É demasiado confortável intitular tudo isto como “obscurantismo”, “negacionismo”. O que assim se designa não é nada mais do que a lógica societal que não se deseja enxergar seriamente. Para além e aquém de medidas salvadoras, verticais, tenhamos por crível que é a massa quem possui o caminho certo e que é ela quem aponta para o alvorecer.