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Gilead é bem aqui!

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Por Anne Damásio (Instituto Humanitas/UFRN)

Ilustração feita por @billythebutcher

O fundamentalismo religioso que viceja por essas paragens, a eleger e marcar a ferro pecadores e hereges, em comunhão com a extrema direita – que se esconde nos gestos mais vis, para em nome de uma assepsia moral legitimar atrocidades.

O uso político da dor alheia a servir de palanque para que os “cidadãos de bem” que se arvoram pró-vida do feto, porque incapazes de se indignar e solidarizar diante da violência sistematicamente impingida a uma criança de dez anos, repito, dez anos, abusada desde os seis anos. Se transformou no cenário grotesco que deslizou da recusa por parte do hospital referência da cidade da criança, em efetivar o procedimento, assegurado por lei, a exposição obscena da criança – inicialmente nas redes sociais da ministra da Mulher, família e direitos humanos (o que em si já é pura denúncia do arbítrio), culminando numa ‘procissão’ de emissários à cidade da criança violentada, com a desculpa estapafúrdia de garantir que a gravidez – é disso que estamos falando? – fosse levada a diante. Mesmo que a cada menção de gravidez, feita em frente a criança, gritos de horror misturados ao pranto emergissem. Mas eles não se compadecem com isso, as pautas deles são seletivas, e sempre contra as verdadeiras vítimas.

A via crucis se inicia quando diante do absurdo que é cogitar a continuidade do horror, se obriga a criança e a avó a recorrer a justiça, porque diante das leis da igreja, parece de nada valer as leis dos homens – e as garantias duramente asseguradas, nesse caso de abortar por conta do estupro, e de possibilidade de morte materna – mas esperem, uma criança não deveria ser mãe, não é de maternidade que falamos, é de abuso, perpetrado pelo monstro que a violentava, e legitimada pela horda de fanáticos e hipócritas que teimam em usar o nome de Deus para justificar seu imenso desejo de sangue.

A via crucis continua, quando tendo o atendimento negado em sua cidade, a criança e a avó são obrigadas a viajar a Recife, para ter seu direito finalmente assegurado. E mais uma vez, sob gritos de assassina – vejam bem, assassina! – e outras barbaridades que saiam das bocas que espumavam de ódio diante do hospital, elas entram escondidas, sob pena de serem fisicamente agredidas.

Dessa vez, entra em cena mais uma extremista, da estirpe daqueles que se aglomeram em frente ao hospital a babar de ódio, autorizada pela atitude da Ministra da mulher, família e direitos humanos, que foi a primeira a conduzir o caos com toda calma do mundo. Essa mulher odiosa expõe a criança, seu nome, cidade, lugar onde seria feito o procedimento, ela EXPÕE a criança. A mesma criança que vítima de abuso sexual resta maculada, tendo de conviver com as fraturas psíquicas, sociais e sexuais dessa monstruosidade.

Essa criança não foi um caso isolado, numa sociedade patriarcal que tutela corpos e vidas de mulheres e crianças cotidianamente, nos resta uma sensação de impotência de que nossos corpos nunca nos pertenceram, pertencerão? Gilead é bem aqui!

Para eles não existe direito que assegure a interrupção da gravidez em caso de estupro, eles autorizam, quando negam esse direito, a reprodução como explicação para o abuso, e então acobertam o monstro que a violentou por quatro anos – repito, quatro anos! Para eles não importa que a ciência delibere sobre a impossibilidade de um corpo de criança, biologicamente falando, abrigar o que para sempre em sua memória será a materialização do terror.

Como em Saramago: Aparentemente, sim, estou inteira [apesar de conhecer as feridas do mundo]. Mas quem me conhece bem sabe que sangro por dentro. Todos os dias a todas as horas. Sou, em carne e em espírito, um grito de dor e indignação.