No dia 29/07, data em que o Brasil alcançava, em números oficiais, a marca de 90 mil mortes em decorrência do Covid-19, o deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) e também pastor neopentecostal Marco Feliciano escreveu em uma rede social que “O Brasil ainda continua sendo o país que tem mais pessoas curadas do COVID-19 em todo mundo[1]. Hoje chegamos a 1,7 milhões de pessoas curadas! Lamentamos as mortes, mas não podemos deixar de celebrar a vida!”. No dia seguinte, na mesma rede social, o deputado escreve, anexando uma tabela do Ministério da Saúde, “Lamento pelas mortes, mas devemos celebrar a vida! Somos quase 1,8 milhões de pessoas recuperadas. Veja os dados do @minsaude de ontem”.
Os políticos brasileiros alinhados com a direita, sobretudo aqueles que em algum momento pegaram carona no bolsonarismo, parecem ter algo em comum: o desprezo pela vida, não raras vezes envolto por uma falsa narrativa de proteção da vida. Os tuítes de Marco Feliciano evocam que, embora 90 mil pessoas tenham morrido em decorrência da pandemia nos últimos cinco meses, ainda há espaço para celebrar a vida, pois há também um grande número de “recuperados” – é importante levar em consideração que esse indicador trata como recuperado qualquer pessoa que sobreviveu após infecção do Covid-19, sem considerar as sequelas adquiridas pela enfermidade e a sobrevida do paciente, incluindo como “recuperados” até mesmo aqueles que, em decorrência de alguma sequela deixada pela infecção, falecem logo após se recuperar do Covid-19.
O que Marco Feliciano omite em seus pronunciamentos é que a alta quantidade de recuperados existe precisamente por causa da alta quantidade de infectados, da qual decorre também a alta quantidade de mortos. Logo, o que anuncia como uma comemoração à vida figura concretamente como uma comemoração à morte. E levando em consideração que, no Brasil, a morte pelo Covid-19 se distribui de forma desigual, afetando principalmente a população mais pobre – seja porque não tem garantida a possibilidade de isolamento; porque padecem sem leitos na rede pública; ou porque, em decorrência da falta de acesso a saúde e medicamentos, não tem suas comorbidades controladas –, a morte que Marco Feliciano comemora é sobretudo a morte dos setores mais empobrecidos da sociedade brasileira.
O pronunciamento de Marco Feliciano em sua rede social foi a releitura, talvez com tons mais sofisticados, porém não menos cruéis, do que fez Wilson Witzel em 20 de agosto de 2019, governador do estado do Rio de Janeiro, quando comemorou a morte de um homem que estava envolvido no sequestro de um ônibus. Em alguma medida, trata-se do necrobiopoder que Berenice Bento propõe como instrumento analítico no artigo “Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?”, ou seja, o exercício poder que define de forma simultânea o “fazer viver” de uns e o “fazer morrer” de outros. Mas, às vezes, trata-se apenas de necropolítica pura e simples.
Os episódios de Marco Feliciano e Wilson Witzel, embora guardem semelhanças, também revelam que são produzidos em um momento distinto. O caso de Witzel em 2019 demonstra o processo de distribuição desigual do luto e do estatuto de humano, enfatizado por Judith Butler em “Vidas precárias: os poderes do luto e da violência” e Achille Mbembe em “Crítica da razão negra”. A morte daquele jovem não deveria ser lamentada, mas, ao contrário, comemorada, pois havia uma espécie de consenso social – pelo menos entre alguns setores – que afirmava tanto que ele não fazia parte da categoria de humano, como integrava algo no campo de uma existência desumanizada, monstruosa, demoníaca. Ora, essa é a forma como a existência dos corpos negros, marginalizados, desviantes, alucinados é traduzida socialmente: ou como “coisas”, destituídas de humanidade, ou como figuras repulsivas.
A diferença que tal episódio guarda em relação aos pronunciamentos de Marco Feliciano, emitidos em plena pandemia de Covid-19, é que agora essa lógica de desumanização parece ter sido expandida e distribuída a um conjunto maior da população: não há porquê chorar 90, 100, 200 mil mortes evitáveis, mas sim comemorar. A fala de Marco Feliciano já é cruel e irresponsável se emitida por um cidadão comum, mas é ainda mais quando o agente comunicador é deputado e pastor evangélico.
[1] Além dos problemas éticos que envolvem a afirmação do deputado, esta é também uma informação falsa: o Brasil não é, pelo menos por enquanto, o país com o maior número de recuperados. Ocupa, entre todos os países do mundo, a segunda posição, tanto em número de recuperados, quanto de infectados e de mortos.