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Sobre o ateísmo ético

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Ivone Gebara (Filósofa e Teóloga Feminista)

              Estamos vivendo um difícil momento, onde nossas emoções, talvez as mais tristes e violentas, estejam à flor da pele. Estamos com raiva de uma porção de situações, de governos e desgovernos, de pessoas, de nós mesmas. Divisões se acentuam, opiniões se conflitam, ameaças de morte são feitas a quem ousar pensar de forma diferente dos xerifes do mundo.

Estamos sem saber quem seremos num futuro próximo ou se ainda seremos o que gostaríamos de ser. Todas/os estamos ameaçados por uma morte viral que toca não só pessoas, mas todas as instituições sociais e nelas também as instituições religiosas que inocentemente se acreditavam isentas desses perigos. “Desde o menor até o maior, todos eles são gananciosos; e desde o profeta até o sacerdote todos eles praticam a mentira. Cuidam da ferida do povo superficialmente, dizendo Paz, Paz! Quando não há Paz!” (Jeremias 6,14). “Parai vossos caminhos e perguntai(…) qual é o caminho do bem? Caminhai nele!” ( Jeremias 6, 16). Qual é o caminho do bem?

Clamar insistentemente a Deus para que venha nos ajudar a sair dessa espécie de dilúvio coletivo não parece surtir efeitos imediatos. A morte se multiplica como fruto de ‘grande plantação’. Porém, uma vez mais em nossa História os pregadores políticos ou religiosos continuam preocupados em aparecer como aliados e representantes de Deus, tentando ajudar os fiéis a fazer sua vontade. Mas que Deus seria este, tão lento em ouvir os clamores de seu povo? Que Deus é esse que não se comove com o sofrimento e a morte de milhares de pessoas? Que Deus é este vomitado pela boca de políticos, clérigos e fanáticos cada um tornando-o à sua própria imagem e semelhança?

Nessa situação inconfortável e triste, além do profeta Jeremias, me lembrei do filósofo judeu Emanuel Lévinas, especialmente de algumas memórias de seu livro ‘Totalidade e infinito’ (Lévinas, Emanuel, Totalité et Infini. Martinus Nijhoff, La Haye, 1971). Lembro-me da distinção que evocava entre a religião do todo poderoso e a religião do Infinito. Floreio e reelaboro algumas ideias a respeito dessa distinção, que me parece sábia e útil para o momento em que estamos vivendo, embora o contexto seja diferente.

A religião do deus todo poderoso é aquela em que a gente crê que Alguém, uma Pessoa divina com total poder nos fala e dirige nossas escolhas de vida e nossa História. Referimo-nos a ela como se fosse alguém de nossa convivência cotidiana afirmando: deus disse, deus mandou , deus escolheu, deus quer, deus fez, deus fará ou a negativa a cada afirmação. Nem nos damos conta de nosso atrevimento! A partir dessa imagem, construíram-se doutrinas, maneiras de agir, afirmadas como a vontade desse supremo e todo poderoso ser à nossa imagem. De certa forma, fizemos e fazemos o todo poderoso caber dentro de nossos pensamentos e poderes, impomos a ele nossa maneira de ver o mundo e o afirmamos como a garantia de nosso caminho e das propostas que fazemos. É como se o todo poderoso me habitasse do meu jeito ou que fosse um eu idealizado e forte, ditando-me suas ordens e permitindo-me criar regras de conduta à minha imagem e semelhança, porém afirmando-as como provindas dele. Sem querer, talvez reduzo o todo poderoso a meu próprio desejo ou a um poder que concede a mim o que necessito individualmente. E o todo poderoso deve então responder às minhas necessidades e até aos mais absurdos e recônditos desejos que acalanto. Nem me dou conta que o estou reduzindo a mim mesmo, ao meu pequeno mundo e aos meus pequenos pensamentos. Nem percebo que meus desejos e sonhos são meus e podem até ser prejudiciais a outras pessoas e que coloco o todo poderoso num beco sem saída.

A partir dele, também construo imagens de pessoas (santas/os, heróis, ilustres personagens) que, segundo me disseram, seguiram sua vontade e que podem ser as minhas intermediárias nessa aventura de convencer o todo poderoso de minhas reais necessidades. Além disso, ao submeter-me a uma lei, a uma regra, a uma ordem provinda de alguma autoridade religiosa que o representa, é como se estivesse submetendo-me ao todo poderoso, expressado em linguagem e imagem simbólica predominantemente masculina.

É nesse momento que encontro com o ateísmo ético, ligado à ideia de Infinito de Lévinas. É difícil para nós seres finitos imaginarmos o Infinito. O máximo que fazemos é pensar o Infinito como contrário ou oposto à nossa finitude. Mas, mesmo assim, este Infinito é dificilmente apreendido por nós individualmente, visto que sabemos que nós seres vivos tivemos um começo e teremos um fim. Entretanto, falamos do Infinito e de certa forma o buscamos. Ele parece ter uma função positiva que é a de nos remeter à nossa própria ignorância, ao nosso limite, visto que dizemos que ‘ele’ conhece tudo, sabe tudo e pode tudo em oposição a nós. Sem perceber, temos a ousadia de personalizar o Infinito e de submetê-lo às nossas regras epistemológicas, morais, políticas, religiosas ou de convivência cotidiana. Tornamos o Infinito desejável, reduzindo-o ao nosso desejo e ao que não somos. Dessa forma, assimilamos o Infinito ao todo poderoso, enquanto Lévinas parece distingui-lo. Ao assimilarmos ‘Deus’ apenas a uma qualidade humana, o assimilamos a nossos comportamentos, mesmo se pela via negativa, e estamos de certa forma na idolatria, isto é, reduzindo o Infinito aos ídolos ‘feitos por mão humana’ e que podem servir aos nossos próprios e limitados objetivos. Caímos novamente no registro do todo poderoso, aquele que permite a existência dos poderosos chefões, dos ditadores, dos carrascos, dos que se excitam com o cheiro do sangue humano, dos que perseguem os diferentes, exploram os fracos, violentam mulheres e acreditam ser eles a lei para os outros. Reproduzimos os comportamentos dos que se julgam donos das verdades, donos das terras, exemplares  da raça pura, gênero superior.

O Infinito não pode ser reduzido a nada e a ninguém. Só o silêncio diante de um céu estrelado ou o silêncio interior, impedindo o domínio do pensamento, podem vislumbrar a magnitude do mistério infinito do qual somos ínfimas partes. Silenciar é preciso… Silenciar para não ouvir meus pensamentos, para não perturbar essa tênue luz que se pode vislumbrar e que nos convida a algo diferente, algo que ainda não sabemos bem o que é.

Suspeito que Jesus de Nazaré, judeu, viveu algo parecido. Fomos nós, os cristãos, por diferentes razões históricas, que iniciamos a jornada de identificação de Deus ao homem, a tornar o homem Deus, a falar de Encarnação. Nem nos demos conta do quanto de exclusão e violência vivemos! Porém, embora haja algo nesta identificação que parece cheia de sentido, na medida em que o infinito na estatura humana é fundamentalmente o infinito ético, temos que ser cautelosos. A História é testemunha dos massacres que realizamos em nome de nosso homem Deus!

Falar de ateísmo ético, ou seja, nos orientar na fonte do respeito ao outro, não emanada de um ser todo poderoso à imagem de um modelo humano único pode nos abrir novas visões. O Infinito é bem mais do que o humano nas suas relações amorosas e nas suas relações éticas. O Infinito é incomensurável. As ações de Jesus nos Evangelhos, apesar da maquilagem dos escritores, tradutores e intérpretes, apontam para esse Infinito ético, capaz de convidar à mesa aqueles que nunca poderão convidar-me para retribuir meu gesto. Apontam para leprosos, paralíticos, cegos e famintos que abundam em nosso meio e que temos até medo de nos aproximarmos deles; porém, é a partir deles que o reino dos céus da irmandade é experimentado. E, nessa dinâmica, ouso afirmar que o último suspiro de Jesus é a entrega ao Infinito que parece não ser o ‘pai todo poderoso’ sentado em seu trono de glória. É o ‘Abba’ (Pai) mais além da biologia humana, mais além do todo poderoso. Suspiro, grito, entrega última à misteriosa dinâmica da VIDA.

O todo poderoso pode dar ao homem o poder de dominar a terra, mas o Infinito, sem um nome específico, pois é o Tudo para além de todos os nomes, apenas aponta para o faminto ou para a mulher sofrendo fluxo de sangue, para o apátrida, para o sem teto, para a menina triste, e faz estremecer minhas entranhas mesmo que eu não faça nada por eles/elas. O Infinito pode apenas fazer tremer minhas entranhas diante da caça aos elefantes africanos, diante das queimadas nas florestas, diante da extinção de muitas vidas. O Infinito pode criar em mim a revolta em vista da restauração de vidas. Esse Infinito não promete nada, nem mesmo a libertação dos oprimidos, nem mesmo a felicidade eterna no final dos tempos. Apenas abala e atrai as entranhas humanas! Todas as compensações e justificações são pensamento nosso, discurso dos infelizes, tentativas de buscar a justiça e o céu para além da terra. Todas essas atitudes podem ser recuperadas pelos senhores dos tronos e dos templos.

Nosso tempo pessoal está exausto de mensagens do todo poderoso ou melhor, de muitos todo-poderosos se digladiando, considerando-se quase eternos, convencidos de sua autoridade e esperando que seus filhos únicos legítimos herdeiros continuarão seu poder. Os ídolos, os nossos, nos dão segurança e consolo, mas são ao mesmo tempo perigosos porque nos impedem de buscar os outros/as livremente, nos impedem de nos darmos as mãos, de tecer redes uns para os outros e com os outros. Instauram um clima de medo recíproco e de beligerância contínua, atacando-nos mutuamente e prometendo aos pobres os benefícios de uma futura terra fértil e a estabilidade capaz de suprir as necessidades básicas de todos os cidadãos e cidadãs sem distinção de raça, gênero e classe. O todo poderoso promete, o Infinito silencia e convida dentro de nós a olhar os lírios do campo, a dar a mão aos caídos e a dividir o pão e a casa.

Já não temos forças para acreditar nas fantasias anunciadas como se fossem realidades. Já não temos mais energia para cantar hinos guerreiros e nem para saudar suas bandeiras, que ficticiosamente representam as matas que eles mesmos destroem e o ouro que eles exploraram, deixando a terra ferida e ensanguentada e o azul dos céus que poluíram e o profundo das águas que sujaram. Já não aguentamos mais ver tantas cruzes espalhadas sem ressurreição e tantas bênçãos dadas para exaltar poderosos!

De que serve a minha ira momentânea?  De que serve minha heresia confessada? De que serve meu palavreado inconformado de ver tanto desperdício acumulado e tanto futuro matado no presente? Talvez apenas sirva como consolo fugaz como quem dá um último grito ou relembra uma canção de amor onde faltam algumas estrofes ou faz uma poesia para se sustentar ao mesmo tempo no sentido e no não sentido.

Nenhum auxilio virá do Deus todo poderoso criador do céu e da terra! Nenhum auxílio virá de seu único filho, primogênito de toda criação! Nenhum auxílio virá do Espirito Santo, pássaro apavorado com nossas espingardas apontadas para seu peito nas florestas tropicais. Todos se originam do modelo do ‘todo poderoso’! Filha de meu povo, veste-te de saco, revolve-te no pó e lamenta, uma lamentação amarga…” (Jeremias 6,26)

A indiferença atravessa terras, céus e mares, enquanto os cofres se enchem de ouro, moedas de prata roubadas são escondidas nas vestimentas e milhares morrem de fome. Milhões de pessoas continuam rondando pelas ruas à procura de roupa, abrigo e comida… E ricos celeiros transbordam!

A mentira continua a dar substância aos crimes. Mistura-se ao pão cotidiano de forma a envenenar a criança, o jovem e o velho com suas maledicências vestidas de veracidade possível. E não se teme jurar pelo ‘todo poderoso’, afirmando que se está a falar a verdade, que não somos autores dos crimes que nos acusam e nem sequer violentamos as multidões de desterrados. Não se hesita em jurar sobre a Bíblia, em buscar nela justificações, em fazer procissões com ela como testemunha das ações do ‘todo poderoso’. E para coroar convicções e para que elas continuem a nos dar pretensiosas seguranças, muitos nos oferecem para depósito os números de sua conta bancária!

De que nos serve o todo-poderoso? Serve talvez para iludir-nos em relação às nossas dores ou talvez para deixar-nos iludir por esperanças vãs pronunciadas apenas por seus filhos legítimos? Inventam artifícios, maneiras de viver sem consciência do necessário bem comum, apegam-se às suas próprias mentiras e à sua ignorância, acreditando que todos/as se dobrarão ao que dizem.

Sem o todo poderoso talvez o frágil rosto do outro possa me lembrar do meu. Talvez possa tornar-me cada vez mais a mão estendida, o pão dividido, a terra plantada em conjunto, a terra limpa em mutirão, a educação abrindo novos caminhos. Talvez possa tornar-me água pura que sacia a sede, casa habitada por todos. Sem o todo poderoso e suas hierarquias representativas, posso ter mais liberdade para criar de mãos dadas algo mais aconchegante, mais alegre e livre, apesar dos medos e inseguranças. Talvez sem ele, não teríamos outra saída a não ser respeitarmo-nos e tocar ternamente nossos corpos para simplesmente viver como interdependentes na Infinitude comum que nos toca.

Haverá algum sentido nessa demência intuída e escrita que me acomete? Não sei. Confesso a minha dúvida como confesso minha simpatia pelo silencioso Infinito. A Infinitude, o infinito é sem cara fixa porque provém de milhões de anos luz, provém da evolução de muitos seres que são impossíveis de lembrar e resgatar. A Infinitude é sem limite, sem fundo, sem uma única espessura. Tem muitas formas e expressões. Nos envolve e nos convida a viver com respeito mútuo apenas esse instante em que por acaso estamos juntos. Por acaso estamos juntos nesse mesmo tempo da terra comum. Por acaso temos só esta chance de estarmos vivos e degustar do sabor da vida como ventura de hoje para hoje.

Por que roubar uns dos outros esse instante de prazer que é estar vivo agora? Por que eliminar dos outros o direito ao instante e prometer a vida eterna em troca? Ganância! Ilusões! Estamos cheios de ilusões fantasiando nossa realidade tão bela e tão provisória. Mesmo se algumas ilusões são atraentes e as vezes até momentaneamente necessárias elas não podem ser a finalidade única de nossas vidas.

Medrosos por nossa incômoda orfandade redescoberta, abandonados pelos padrastos que se sucedem, enterramos a nossa fé na humanidade nos escombros de devoções idólatras e dos sonhos vãos. Seria possível acreditarmos na Infinitude para além dos totalitarismos? Seria possível não reduzirmos a grandeza do que existe a um pensamento criado, inventado e que pretende submeter o mundo ao seu ego hierárquico? Seria possível resgatar o Infinito em nossas tradições? Ternamente, suspeito que sim.

Há que provar do cálice silencioso da Infinitude. Há que aprender e ensinar as infinitas sabedorias dos povos. Há que orar em silêncio, acolhendo tudo o que é na sútil percepção que temos de sua presença. É ela que nos revela um segredo difícil de aceitar… É o segredo de sermos apenas guardiães momentâneos uns dos outros, efêmeros guardiães do planeta apenas nesse instante, o instante de cada vida. Já não somos mais ‘a medida de todas as coisas’ como disseram os antigos filósofos, já não somos mais o centro do universo apesar de nossas descobertas e de nossa ciência. Somos apenas entre e com outros, na aventura de ser apenas pó e ao pó voltar!