Por Anne Damásio (Instituto Humanitas/UFRN)
Tenho carregado o tempo no meu corpo, talvez daí advenha o cansaço, como um arrastar de pés pela casa, que sugasse meu ser inteiro para o centro da terra, supondo que ela não seja plana como os profetas do absurdo tem proclamado já tem uns anos. Antes de falar da sensação de ser sugada, preciso dizer do imenso conflito gerado pelo absurdo, esse mesmo que puxou uma cadeira devagar e ‘abancou-se’ bem no meio da sala, e pelo olhar de desprezo que lança aos presentes – nesse caso, nós que estamos enfiados nesse apartamento/bunker – a cada notícia ab-sur-da, e sei que repetir isso me tornará tediosa, mas preciso dizer novamente, porque sendo banalizado, o absurdo resolveu sair languidamente por aí a debochar da cara dos que tem consciência, compaixão, empatia, ou qualquer sentimento/virtude que o ligue aos outros, e começo a crer que no momento os tais sentimentos só servem para fazer doer.
Deixemos o absurdo abancado no centro de quase todas as casas, porque em algumas ele é convidado de honra, em outras tantas o ignoram por puro medo de lembrarem que a presença incômoda é resultado das escolhas políticas feitas, e então, esses sonsos essenciais lançam a máxima, ‘aqui não falamos de política’, como se o não dizer apagasse o absurdo, ou retirasse o sangue das suas mãos.
A narrativa se perdeu no caminho porque o absurdo me faz fincar pés a procura de um significado qualquer para esses instantes com garras…E eis que o fio da narrativa se fez ver entre os meus dedos, estreitei os olhos, esses que eu costumava dizer entre orgulhosa e entediada, já terem visto de tudo, e recomecei…Entre mim e o mundo havia uma espécie de pausa, talvez uma trégua, algo que não consigo nomear, e sendo assim se ressente de existir. Isso que não sei bem o que era, me fazia alternar entre dias que experimentava uma certa vida no corpo, e dias em que meu corpo era sugado para o centro da terra, o peso persistia. Mas preciso afirmar num quase grito, porque tenho tido medo de estremecer ainda mais a pouca reserva de sentido do mundo, que penso existir em algum lugar, que NA-DA tinha me preparado para ver o mundo colapsar, entre incerteza, angústia e mortes que poderiam ter sido evitadas, eles, todos eles, politizaram a pandemia, e agora andamos assim, sem entender para onde o tempo nos levará.
Procurando novamente a linha que escapou da minha mão, para continuar a narrativa, porque dizem, só as narrativas podem fornecer um sentido ao imenso sem sentido que agora é viver, retomo-a intuitivamente, e a linha que era branca, agora está transparente. Olho de soslaio para o absurdo, e dou as costas a tudo que ele representa, e então aquela sensação de não saber habitar esse tempo me enche de angústia, esse vazio em que cabe quase tudo e não se encaixa quase nada. O passado, não, não era só o passado, o que dilacerava, era não poder sob hipótese alguma voltar ao passado, que eles diziam ser lugar de normalidade, esse mesmo que rescendia ao cheiro nefasto do ódio as gentes. Então não ousem afirmar que deveríamos adotar um ‘novo normal’ – com o cheiro de naftalina que seguramente consigo sentir daqui. Como podem chamar aquilo de normal, ou talvez isso, seja tudo que tudo aquilo era, nor-mal! Afinal, quem define a norma?
Agora o presente, como corda esticada sobre o abismo, entre um passado de ‘não mais’, e um futuro sequestrado a luz do dia. Essa tríade improvável jogou na minha cara a falácia da linearidade. Às favas com essa sucessão obtusa de dias que se desdobram em horas, seguidas de minutos e segundos. O tempo que parei de contar quando me instalei em definitivo no apartamento/bunker, é totalmente circular, ele ensaia volteios em torno de mim, me tira para dançar, não mais a dança sequenciada dos ponteiros, mas uma valsa lúgubre, enquanto o jornalista diz para o absurdo do aumento de mortes, tantos números descorporificados, tantas vidas sem nenhuma história para ser cerzida, eu penso em famílias que ainda estão presas ao momento em que souberam da partida, sem possibilidade de elaborar o tempo do luto, momento em que a dor veio substituir a vida, aquela mesma que até o diagnóstico, exalava e dava sentido a todos que amaram e perderam.
Então resolvo cerzir de alguma forma o tempo, e aquelas existências, e inquiro – escorada no medo que treme levemente receando que o absurdo o veja e passe a esfregar suas mãos sujas de sangue – como trazê-las de volta? Até quando teremos o nosso futuro nas mãos de um passado que gestou lenta e perversamente o horror?