Search
Close this search box.

A pandemia e as promessas da desaceleração do mundo

Compartilhar conteúdo:

A pandemia de Covid-19, por suas consequências e implicações, se espalha como um fato social total. Ela penetra nos mais diversos aspectos da vida da sociedade. Essa nova cepa do coronavírus tem afetado do tabuleiro da geopolítica às dinâmicas sociais e emocionais da vida pessoal. Se o poder e a velocidade da transmissão do vírus provocam um fascínio assombrado em epidemiologistas e virologistas de todo o mundo, a potência do vírus em sacudir a totalidade da sociedade incita o mesmo em cientistas sociais. Por isso, a profusão de reflexões e tentativas de interpretação acerca do que está nos acontecendo e acerca do que poderá nos acontecer no mundo pós-pandemia.

Em texto anterior, sugeri a ideia da pandemia como um momento crítico em que muitas das contradições e dos limites que sustentam o mundo que criamos e a maneira como nós vivemos até então ganham uma súbita clareza. Assim, a crença moderna de que alcançamos uma racionalidade cujo progresso inexorável é capaz de dominar e de nos libertar da natureza ou uma forma de sociedade conduzida por uma lógica em que a economia predomina sobre a saúde e a vida humana, ambas, agora, nos aparecem cristalinamente em sua fragilidade, incoerência e violência. Isso significa que, apesar de todas as mortes e das dores que a pandemia tem duramente infligido, este momento árduo da história é, por assim dizer, uma ocasião de reflexividade, em que podemos aprender sobre nós mesmos ao olhar para as nossas relações sociais, concepções e modo de vida de uma outra maneira.

Por exemplo, a meu ver, o confinamento social prolongado, que o novo coronavírus tem imposto sobre grandes parcelas da população do planeta, enseja a experiência de uma nova condição temporal, um outro senso de temporalidade, distinto da aceleração a que estamos acostumados. Na verdade, uma aceleração que vigora introjetada dentro de nós. Tem-se, dessa maneira, a possibilidade de questionar acerca de como temos vivido sob uma velocidade e ritmo tal, que, como sugere o sociólogo alemão Hartmut Rosa, importante estudioso contemporâneo da cultura temporal moderna, parecemos “hamsteres correndo e girando permanentemente dentro de uma roda”.

Há pelo menos dois séculos, vivemos em uma sociedade cuja velocidade nos faz sentir que nunca descansamos suficientemente, que estamos sempre ocupados e focados em projetos e resultados sucessivos, em que a vida mais se assemelha a uma lista interminável de afazeres e prazos do que qualquer outra coisa. Como qualquer habitante de uma cidade média e grande sabe, a sensação de pressa e de urgência é uma das experiências e sentimentos mais característicos do que significa viver numa sociedade urbana moderna. Não é por acaso que uma das mais famosas e contundentes expressões da cultura moderna seja “tempo é dinheiro”. De fato, ela pode ser melhor entendida como “tempo é desempenho, resultado e êxito”.

Temos internalizado uma pressão temporal e um sentimento generalizado de escassez do tempo como se fossem inerentes à vida, ao invés de algo sistêmico, como se fossem, aliás, o preço a se pagar para se autoperceber como útil, produtivo e socialmente integrado. Porém, a aceleração não funciona sem um alto custo em termos de energia, e energia que não deriva apenas de matérias-primas, mas energia social e psicológica de trabalho e engajamento humano nas atividades. Seus danos não se restringem a satisfação adiada. Não é de se estranhar, sob esse ângulo, que a depressão, a ansiedade, as crises de pânico e a síndrome de Burnout, assim como os ansiolíticos, soníferos, antidepressivos, sejam doenças e remédios da sociedade do cansaço, como sugere o filósofo Byung-Chul Han. Um cansaço, por que não, da aceleração e da hiperatividade de nossa condição temporal.

Como explica Hartmut Rosa, a aceleração da experiência do tempo, essa característica definidora de nossa época, se deve ao modo como as sociedades modernas estão organizadas para funcionar e se reproduzir, isto é, expandindo-se e intensificando-se a si mesmas continuamente. São sociedades dependentes da lógica de competição, da acumulação, do crescimento e da inovação permanente nos seus mais diversos campos. Por isso, curiosamente, só se estabilizam no movimento. A experiência do mundo é, desse modo, acelerada de diferentes formas e em suas diferentes dimensões, processos e atividades. Nossa percepção de que o tempo passa cada vez mais rápido resulta exatamente desse estado de aceleração e dinamização constante da vida econômica, social e cultural de nossa sociedade: as mudanças tecnológicas e a velocidade de renovação da produção de bens e serviços, os transportes que deslocam rapidamente pessoas e mercadorias, a intensificação e ampliação do fluxo de dados, de informações e comunicação, o encurtamento dos ciclos de produtos, tendências de consumo e modas, a transformação brusca dos padrões de organização do trabalho etc..

Quando, então, tudo isso parece, em grande medida, se não paralisar mas reduzir drasticamente sua velocidade, graças ao confinamento, de repente, temos tempo. E este recurso escasso que perseguimos incessantemente, e que, no entanto, parece sempre nos escapar, agora, ao menos para as camadas médias e mais asseguradas contra as urgências materiais, parece fluir e abundar em nosso dia-a-dia. Com as escolas e comércios fechados e diversas atividades e funções produtivas suspensas, obrigando parte significativa da força de trabalho mundial a ficar em casa, o frenesi da vida diária entrou em novo compasso, a aceleração social que define a “normalidade” entrou em repouso.

Desse modo, diante de um tempo que parece se alargar, e a despeito de todas as tentativas de colonizá-lo, seja virtualmente com trabalho remoto, home office, vídeo conferência, as infindas lives dos artistas ou com o dito “ócio criativo”, que é puro produtivismo disfarçado, atividades e práticas para quais não tínhamos “tempo” começam a se fazer notar e reemergir. Nos mais diversos locais, os relatos dão conta desde mais tempo para brincar com os filhos, conversar com os vizinhos, cozinhar, ficar à toa na varanda, telefonar para familiares em vez de enviar uma mensagem via WhatsApp, retomar antigos hábitos como tocar violão, jogar xadrez, pintar, à ler de maneira desinteressada livros que há muito se queria, aprender idiomas e novos assuntos apenas pela curiosidade e gosto. O mais importante: percebemos como o tempo é um bem civilizatório e humano essencial à boa vida, inclusive para não fazer nada, como simples “direito à preguiça”. Estamos aprendendo que o tempo possui significados e usos não-utilitários.

A criatividade e a solidariedade de práticas coletivas que temos assistido em meio ao isolamento social, como os cantos em coro nas sacadas dos prédios, as brincadeiras e jogos entre vizinhos, relacionam-se, certamente, a abertura do espaço de experiências que a desaceleração social suscita. Até mesmo os padrões de consumo e seus significados parecem, nesse momento, sofrer alterações na experiência dessa nova condição temporal e espacial que a pandemia, sem qualquer intencionalidade, está nos impondo como indivíduos e sociedade.

O confinamento e a suspensão de várias atividades trazem consigo a possibilidade de problematizar a aceleração, e, assim, reconhecer, sem rodeios e elaborações, a violência sistêmica da velocidade e da hiperatividade da sociedade de desempenho em que temos vivido nos últimos dois séculos. Mais do que nunca, cristalinamente, podemos perceber o quanto o ritmo da vida dita “normal” é, com efeito, incompatível para desfrutar a pluralidade e riqueza de nossos interesses, aptidões, potencialidades.  A pandemia abriu, com efeito, essa brecha para imaginar uma cultura temporal diferente, que um tempo social outro é possível.

Evidentemente, a relação e a experiência com esse “tempo menos acelerado” não é uniforme em termos subjetivos nem livre da ação e dos efeitos das desigualdades, em especial aquelas de classe e gênero. As pessoas podem e irão experimentar e se relacionar de diferentes e desiguais maneiras. Aliás, a meu ver, a atitude de negação da pandemia e do poder de letalidade do vírus, que, muitos, lamentavelmente, tem adotado, inclusive ao ponto de ridicularizar jocosamente as mortes, não é apenas uma estratégia psicológica defensiva para disfarçar e não lidar com o medo e a própria impotência diante de algo ameaçador: se não é real, logo não tenho medo e continuo no controle da minha vida, pensam. Não é apenas isso. Vejo também essa atitude como sintoma de atordoamento e confusão sobre como agir e ser em mundo em desaceleração, por isso as enfáticas e desesperadas reclamações pelo retorno à “normalidade” das atividades. O que se pede, de fato, é o retorno ao mundo, e ao seu “ritmo”, portanto, como ele “sempre” foi.

Se parece certo que os efeitos da Covid-19 podem alterar significativamente muitos de nossos hábitos e concepções acerca das formas de convívio social, relações de trabalho, padrões de consumo, acesso à cultura, modelos de negócio, também a nossa cultura temporal e senso de temporalidade podem, e a meu ver deveriam, mudar. Ao menos como horizonte, a reivindicação por aquilo que o filósofo André Gorz certa vez intitulou de uma “sociedade do tempo liberado”, em que as atividades autônomas preponderam temporalmente sobre as atividades heterônomas, ganha um novo fôlego e sentido de realidade.

Penso que entre as diversas repactuações que essa experiência traumática da pandemia está colocando em pauta, tais como a repactuação do papel do Estado, da valorização dos serviços públicos, da ampliação da proteção social, a repactuação do tempo com a pluralidade da vida e da ação humana, do tempo como fonte de enriquecimento dos conteúdos e possibilidades da experiência humana no mundo, constitui, de fato, tarefa e reivindicação fundamental.

Numa sociedade que expande a precariedade da existência enquanto pressão e escassez temporal, forçando grandes parcelas a jornadas desreguladas de 14 e 16 horas de trabalho diário, que caminha para colonizar até mesmo o sono enquanto tempo produtivo, como mostra o inquietante Capitalismo 24/7 de Jonathan Crary, eu diria que essa é uma tarefa digna e premente de ser demandada e conquistada coletivamente. A utopia de uma “sociedade do tempo liberado” não é apenas possível, ela é desejável, pois condição para uma vida mais plena e livre. Ela é necessária como contraposição à violência sistêmica da aceleração alienante. Se o acontecimento “pandemia” será capaz ou não de catalisar a instituição de um novo senso de temporalidade somente o tempo e a efetividade de nossa ação coletiva irão dizer.