Casa no latim tinha a conotação de casebre, barraco, a palavra para uma residência digna era domus, como era chamado o ambiente doméstico dos patrícios. Ao longo do tempo, suponhamos que pela prevalência de habitações miseráveis, casa passou a nomear todas as nossas residências, embora o domus latino ainda esteja presente na palavra doméstico, mas também em domínio. Diante da calamidade que nos assola pretendemos aqui especular se as pessoas isoladas em casa são mais facilmente domesticadas. Os animais domésticos são aqueles que conseguiram sobreviver sob nosso domínio e já não conseguem mais viver de outro modo. Estamos sempre sob o julgo de algum domínio, mesmo o ermitão na duna entre cajus e tejus é dominado pela linguagem e pelo próprio imaginário cultural do ermitão. Sim, somos todos dominados, dentro e fora de casa, na medida em que somos seres sociais, determinados pela cultura e linguagem. A questão é: qual domínio é legítimo? Quem deve nos dominar? Ou ainda: como resistir a dominação indesejada? Aquele que abdica dessa resistência, ou não questiona aqueles que exercem o domínio, são os domesticados, incapazes de se opor aos que o dominam – os dominus.
Em domicílios onde o papel do dominus, do proprietário ou chefe da família, é cada vez mais equânime em relação aos demais membros da casa, nos sentimos mais a vontade, mais senhores de nós mesmos e mais críticos nas relações de domínio as quais nos sujeitamos fora de casa. É possível resistir a dominações ilegítimas com as ruas vazias. Todo governante começa a cair primeiro dentro das casas. Em casa nos sentimos seguros porque nos sentimos sob nosso próprio domínio, enquanto o cenário lá fora torna-se cada vez mais hostil e imprevisível. Uma sensação familiar em um país acostumado a conviver com o flagelo da violência urbana. A narrativa de um governante que nos salvaria da violência, que nos faria andar tranquilamente nas ruas, entrou em crise com o discurso contrário ao isolamento feito pelo presidente. Quando um governante é ignorado dentro das casas seu domínio perde legitimidade, mesmo que ainda se agarre às vestes institucionais ele ainda estará nu.
No ambiente doméstico temos que conviver com a diferença, respeitar a alteridade de quem divide o mesmo teto. A verdadeira conciliação entre bolhas ocorre em casa, quando precisamos ouvir e respeitar para que a convivência se torne suportável. Nos lares os extremos se aproximam e é mais fácil obter consensos. Todas as vidas da casa importam. Quando algum poder político ameaça um membro da casa, o domicílio torna-se barricada, uma comuna contra essa ameaça. Por isso valores associados a casa, como a família, são tão caros e possuem tanto capital político, sobretudo em uma cultura patrimonialista. Não percebendo isso o atual governo substituiu uma das três colunas do integralismo que parece se identificar: a família, quando priorizou o crescimento econômico em detrimento do isolamento das famílias. Pátria, Deus e economia não se sustentam sem as famílias. O governo anterior também caiu quando não soube fazer frente à narrativa de que ameaçava valores familiares. Ao colocar a economia acima da vida das famílias o governo perdeu a legitimidade que teimosamente ainda detinha em algumas casas. A marca dos carros nas carreatas e os vídeos de empresários demonstram que a legitimidade do governo é dada apenas pelo domus, mas que nas casas e casebres ele perdeu seu domínio.
Desse modo, as pessoas estão cada vez mais em casa e cada vez menos domesticadas por uma narrativa de ódio e ressentimento que nos levou a esse cenário de culto à ignorância. Nesses tempos de pandemia o domínio das narrativas científicas em detrimento das religiosas ou ideológicas se consolida. Independente do seu espectro político ou religioso, a ciência é a mesma para todos. Na dúvida, independentemente das crenças e convicções, as pessoas ainda recorrem ao médico, seja ele coxinha ou cubano. Sendo assim, contabilizando em vidas os danos dessas narrativas não referendadas pela ciência, as pessoas tenderão a ser mais críticas em relação a elas posteriormente. Será um duro golpe contra o anticientificismo desses tempos que assistiram com espanto o retorno do criacionismo e terraplanismo. Apesar do ataque do governo, a imprensa também sairá fortalecida, haverá mais receio em compartilhar notícias não apuradas.
Quando as pessoas finalmente puderem sair do ambiente doméstico, talvez estejam mais caseiras e menos domesticadas por narrativas ressentidas e passionais.