Na tarde de hoje, uma mulher branca, de classe média, fantasiou o seu filho, também branco, de escravo para uma festa de Halloween de um grande colégio privado de Natal e publicou nas redes sociais. A escravidão foi uma brutalidade e corresponde a um passado terrível da sociedade brasileira. Milhares de negros foram arrancados das suas terras, trazidos forçosamente em navios, onde seus corpos eram presos em calabouços minúsculos, sem direito a ver a luz do sol e a comida. Os que não morriam durante a viagem encontraram a negação completa da sua existência enquanto ser humano nas senzalas das casas grandes. Durante séculos, o negro foi açoitado, violentado, assassinado nos troncos e pelourinhos de todo o país, para muitos, um corpo sem alma.
O racismo está arraigado na estrutura da sociedade brasileira há séculos. Fomos o último país da América Latina a abolir a escravidão em 1888, isto é, 130 anos atrás. Temos mais tempo enquanto um país escravocrata, do que como um país livre da escravidão. Desde a abolição da escravatura, por décadas, nos fizeram acreditar que o Brasil era sociedade onde havia uma democracia racial. Onde desde a escravidão, negros e brancos conviviam felizes na Casa Grande e na Senzala.
Quando falamos que o racismo continua firme e forte na sociedade brasileira, não dizemos apenas da boca para fora. A população negra é a mais afetada pela desigualdade e violência no Brasil. No mercado de trabalho, os negros enfrentam mais dificuldades na progressão da carreira, na igualdade salarial e são mais vulneráveis ao assédio moral, segundo dados da ONU e do Ministério do Trabalho. De acordo com o Atlas da Violências de 2017, um/a negro/a tem duas vezes mais chances de serem vítimas de homicídios do que um branco. Ser negro na sociedade brasileira significa ter mais dificuldades para encontrar emprego, para ter um salário digno e para, literalmente, estar vivo.
O racismo exerce uma violência não somente objetiva e física nos corpos negros, como também uma violência simbólica cotidiana através de mitos e piadas exaltados onde associam o negro à criminalidade e aos piores lugares possíveis da sociedade. Cada um de nós em algum momento da vida já ouviu uma piada infame sobre os negros. Essa violência simbólica reforça e legitima a violência física contra a população negra.
Não é homenagem quando um branco se veste de negro escravizado.
Ao fantasiar seu filho, branco, que nunca viveu nem sentirá um milímetro do que significa o preconceito racial no Brasil, essa mulher ofende todos/os negros/as que sofrem cotidianamente com as consequências da estrutura racial a qual nosso país até hoje está submetido. A escravidão não foi engraçada, nem é alegórica. O racismo contra a população negra é real, mata e exclui até hoje.
Não é homenagem quando um branco se veste de negro escravizado. E pior ainda, para uma festa de Halloween, onde supostamente irão se divertir. A escravidão não foi engraçada, matou milhares de negros e deixou uma estrutura racista em nossa sociedade. Um branco de classe média contribuirá contra o racismo se ensinar aos seus filhos que devemos respeitar o outro e que ser negro não significa inferioridade. Se entender que existem privilégios de cor em nossa sociedade e que precisamos combatê-lo. Ao fantasiar seu filho de escravo para uma festa de Halloween você acaba por reforçar essa estrutura racial que tanto oprime os negros/as.
Na conjuntura atual, de avanço de forças reacionárias e conservadoras, relativizar o racismo na sociedade brasileira é ainda mais inadmissível. Não podemos achar natural a existência da escravidão, é preciso problematizá-la, questioná-la e lutar para que suas consequências não mais existam. Senão, carregaremos o risco de ter de volta os grilhões sobre os nossos corpos.